SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Até os primeiros 15 minutos de "Tár", há algo meio incômodo na performance de Cate Blanchett. Ela dá vida a Lydia Tár, a regente fictícia da mais importante orquestra alemã -ficamos logo sabendo que, também, a maestrina é uma das poucas pessoas a ter ganhado um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony na carreira. Ou seja: é um fenômeno.

Personagens superlativas e de temperamento imponente não são algo raro na carreira de Blanchett. Ainda assim, há desta vez algo de extremo, talvez ultra-artificial, na maneira como a australiana compõe a personagem; ela claramente "superatua".

Lá vemos ela: Blanchett como a grande Tár, a gênia musical, dando uma entrevista diante de um público que a idolatra. Ela responde às perguntas de modo a fazer tudo aquilo um espetáculo, no qual ela deve atingir a perfeição costumeira. Dá respostas inteligentes, espirituosas. Exagera e contém gestos e olhares; sua voz é meticulosamente empostada.

A atriz não parece ter medo de soar excessiva na maneira como reforça o clichê da pessoa poderosa, ícone de uma elite cultural erudita. E, embora no começo pareça um perfeccionismo vazio, conforme o filme vai progredindo vemos que Blanchett fez a escolha mais acertada possível para essa personagem tão complicada. Afinal, performar para os outros se tornou parte da própria essência de Tár, a regente de origem modesta que criou para si uma persona de mulher firme, brilhante, de fortes convicções -e que precisa reforçar em sua própria figura essa mesma mensagem a todo tempo, se quiser se manter no topo. Ainda mais sendo mulher.

Para manter o poder, aja como os poderosos. Assim, Tár tem uma série de atitudes eticamente duvidosas --atua pelos bastidores, favorecendo alguns músicos e prejudicando outros conforme seus interesses. E tem um fraco por musicistas bonitas em começo de carreira, então as utiliza como brinquedos sexuais-- até aparecer a próxima novidade na orquestra.

Há uma cena fundamental que prenuncia a derrocada que a maestrina está prestes a enfrentar. Quando ela dá uma aula em Julliard, ouve de um dos estudantes: "Não curto muito Bach". Estarrecida, ela quer saber o motivo de tamanha heresia, e o aluno diz que não consegue apreciar um compositor que na vida pessoal era misógino. Tár toma isso não só como uma estupidez tipicamente millennial como também uma afronta a tudo em que ela acredita em termos de música. Na aula, ela consegue impor sua visão, mas a insolência do aluno a desestabiliza. Tár não consegue entender a sensibilidade das novas gerações.

Mais adiante, um relacionamento abusivo que teve com uma jovem musicista vem a público, e Tár é sumariamente "cancelada". De uma hora para a outra, a regente não tem mais a batuta sobre sua carreira nem sobre a própria vida: seu mundo desmorona.

O cineasta Todd Field mostra uma eficiência quase inacreditável na direção do longa, sobretudo se levarmos em conta que é seu primeiro filme em mais de 15 anos -o último havia sido "Pecados Íntimos", de 2006. É um trabalho elegante, frio, por vezes um bocado acadêmico, que prefere sublinhar a grandiloquência da protagonista que a do próprio diretor -embora sua câmera consiga cenas de complexidade admirável, como a rodada em Juilliard, brilhantemente coreografada. É um filme feito para Blanchett, que se entrega com tamanha ferocidade ao papel que consegue a melhor performance de sua carreira -o que não é pouca coisa.

Em um mundo em que as mulheres lutam com unhas e dentes para chegar a locais de poder que antes eram apenas reservados a homens, é de se perguntar o quão legítimo é fazer uma representação feminina "negativa", com a protagonista desempenhando um papel tão vilanesco.

Pois "Tár" é exatamente sobre isso: os perigos do poder -mesmo uma mulher com consciência feminista não está livre de se perder em meio à sedução de estar no topo. Mas o grande drama da personagem é que seu tempo parece ter chegado ao fim; até por uma questão geracional, seus valores e seus métodos, outrora aceitos sem questionamentos, hoje em dia já enfrentam resistência. A dificuldade de Tár para compreender isso a faz entrar em uma crise insolúvel.

O filme não toma claramente partido no que diz respeito às novas gerações estarem certas ou erradas. Mas mostra que há um conflito --e uma necessidade de compreender que, sim, Bach foi um misógino desprezível, mas que também foi um gênio da música; precisaremos um dia encontrar uma maneira de lidar com esses dois dados de forma madura. E que, sim, Tár agiu muito errado, mas não existiria punição possível que não fosse a danação completa à qual foi relegada?

TÁR

Onde Nos cinemas

Classificação 12 anos

Elenco Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss

Direção Todd Field

Avaliação ótimo


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