SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Morta nesta quinta-feira (2), a jornalista Glória Maria abriu as portas da grande imprensa brasileira para profissionais negros. Conhecida pela versatilidade, a apresentadora e repórter da TV Globo fez grandes entrevistas e reportagens diárias sobre política, economia e turismo.

Primeira negra a, de fato, fazer sucesso na imprensa do país, Glória inspirou crianças e jovens negros que sonhavam em ser jornalistas.

Cynthia Martins, 37, apresentadora da TV Band, foi uma delas. Como a jornalista da Globo, ela também foi criada em Oswaldo Cruz, bairro da zona norte do Rio de Janeiro.

Cynthia conta à reportagem que, por anos, ouviu histórias de vizinhos sobre Glória Maria.

"Ah, ela morava ali e a avó ali", lembra. "Quando eu decidi que queria entrar na profissão, todo mundo falava que eu seria a próxima Glória Maria, mas aquilo nunca foi uma realidade para mim, porque ela estava acima do jornalismo. Ela conseguiu ser maior que a profissão. Mesmo assim, ter a possibilidade de ser como ela era algo imensurável", afirma.

"Ela era a única pessoa igual a mim que eu vi na televisão por anos. Hoje, estou neste lugar por causa dela. Eu e outros profissionais negros só existimos porque ela existiu", declarou Cynthia.

Para Tiago Rogero, 34, criador do podcast projeto Querino, da Rádio Novelo, Glória Maria revolucionou o jornalismo brasileiro.

"Ela cobria desde questões mais delicadas e complexas até aquelas de entretenimento com muita leveza e carisma. Atualmente, fala-se muito da linguagem da TV engessada e que as pessoas estão buscando um conteúdo mais descontraído. A Glória Maria já fazia isso dentro de um rigor jornalístico e ético tremendo."

Rogero diz que "em um país tão racista quanto o Brasil", a apresentadora "apareceu como uma possibilidade de existência das pessoas negras". "É por causa da Glória Maria que hoje em dia há muito mais profissionais como ela na TV, embora ainda sejamos minoria no jornalismo brasileiro, principalmente nos postos de chefia", acrescenta.

"Quem nunca sonhou ser Glória Maria?", diz Márcia Maria Cruz, 45, coordenadora do núcleo de diversidade do jornal Estado de Minas e integrante do Coletivo de Jornalistas Negros Lena Santos.

"Ela se tornou espelho para o Brasil que se enxergava nela. Quando me tornei jornalista, almejava sempre ser um pouco Glória Maria. Ela não é só referência, é uma escola de jornalismo, que exerceu com total domínio da técnica a arte de reportar com muita empatia, ética e humanidade."

Pedro Borges, 31, cofundador e editor-chefe da agência Alma Preta, diz que, quando criança, a apresentadora da TV Globo já era uma de suas referências. "Eu não pensava 'olha, ela é uma jornalista preta, então eu também posso ser', mas devido ao subconsciente, se você me perguntasse sobre meus jornalistas preferidos, eu falaria ela", diz.

"Embora ela não fosse muito alinhada ao discurso do movimento negro, quando as pessoas olhavam pra ela, viam uma mulher preta; então, de certa forma, estava batendo no racismo', ele afirmou.

Ainda assim, ele considera que a presença de Glória nos principais programas televisivos do país não gerou efeito imediato na visibilidade de jornalistas negros.

"Ela era tão vanguarda que isso demorou para se naturalizar e hoje ainda faltam jornalistas negros. Hoje as empresas de comunicação exibem esses profissionais da porta para fora, mas nos bastidores pouca coisa mudou."

Joyce Ribeiro, jornalista e apresentadora do Jornal da Tarde na TV Cultura, conta à reportagem que Glória Maria sempre foi atenciosa nos momentos em que estiveram juntas e que, interessada na carreira de outras profissionais negras, ela se sentia feliz por ser inspiração.

"A Glória Maria foi mais que uma referência. Ela me trouxe a possibilidade de acreditar que seria possível fazer o mesmo ou algo parecido com o que ela fazia: me arriscar no mundo da comunicação e investir esperando uma realização."

Para Joyce, Glória também faz parte do desenvolvimento da televisão brasileira. "Quem gosta de comunicação sempre associou a Glória Maria ao ineditismo, ao fazer pela primeira vez, ao trazer inovação e novidades. Muito do modelo que temos hoje de televisão é parte de algo que ela implementou: o jeito de fazer TV ao vivo, a informalidade ao falar e a proximidade com o público. Isso tudo partiu do olhar da Glória Maria e da facilidade que ela tinha de colocar sua personalidade no trabalho."

A jornalista Semayat Oliveira, cofundadora do site jornalístico Nós, Mulheres da Periferia, ressalta que o legado de Glória vai além da inspiração para pessoas negras.

"É um erro completo lembrarmos da Glória Maria como 'a jornalista negra'. Toda a sua história foi de fuga de 'caixinhas' ou definições. Ela foi a jornalista que revolucionou a TV brasileira. Uma jornalista de excelência e inovação, sua trajetória profissional marca a história do jornalismo brasileiro. Para mim, fica um exemplo de persistência, autoconfiança e de buscar essa mulher, essa pessoa, essa profissional, que não pede licença para existir, para ser e realizar."

Para André Santana, jornalista e colunista do UOL, a trajetória de Glória Maria serve como exemplo para futuros profissionais. "Perdemos hoje uma grande referência, alguém que disse para todos nós, repórteres pretos, que temos talento, competência e podemos exercer essa profissão tão importante para o Brasil."

"Minha imagem de Glória Maria sempre foi assim: para essa mulher estar sempre nas principais posições, nos principais telejornais e nas principais matérias, é porque ela era três, quatro ou cinco vezes melhor. Não estamos falando da melhor jornalista negra do Brasil, estamos falando da melhor jornalista do Brasil, porque se Glória fosse um pouquinho menos, o racismo não permitiria que ela ocupasse os espaços que ocupou", afirma.


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