SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - No sertão, o jagunço é o anjo anunciador. Manuel, personagem do ator Carlos Ataíde, enterra um monte de gente e diz que ainda enterrará uma pilha de corpos. Se a morte é o motor de "Uma Mulher Vestida de Sol", peça inédita de Ariano Suassuna em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB, o próprio jagunço desvela o tempo da epopeia, narrando as desventuras da tragédia sertaneja.
O corpo, enterrado na terra árida, realiza a morte, que teima em não ser mórbida. Afinal, entre o corpo morto e o sol, está o humor, característica do teatro elisabetano, apropriada por Suassuna. No sertão, para cada ossada há um sol, força primeira em cena. Tudo é solar, uma luz que não reflete, refrata ?uma faca só lâmina.
Primeira peça do escritor, "Uma Mulher Vestida de Sol" é também a primeira vez que Suassuna recria no teatro o romanceiro popular nordestino. Escrito em 1947, o texto conta a história de uma disputa de terras entre Joaquim Maranhão, vivido por Guryva Portela, e Antônio Rodrigues, interpretado por Marcello Boffat. Como indicado no texto, uma cerca é montada no palco, dividindo as duas fazendas e uma paixão.
Filho de Antônio, Francisco, papel de Jorge de Paula, se apaixona por Rosa, a filha de Joaquim vivida por Bruna Recchia. Antônio é cunhado de Joaquim, ou seja, Francisco e Rosa, além de enamorados, são primos. "É um Romeu e Julieta do sertão", diz Fernando Neves, diretor da peça. "A cerca não está ali para dividir o palco, é um objeto simbólico e maleável, que acompanha os acontecimentos da história."
Sendo tudo claro, cada ator deve exprimir a sua verdade. No palco, não há espaço para a dúvida, tanto mais pelas reações que se avolumam aos dilemas impostos pela trama. É uma história de amor e morte, honra e religião, todos os elementos que notabilizaram a obra do autor de "Auto da Compadecida", de 1955, e "O Santo e a Porca", de 1957.
Nesse sentido, Neves conta que não há um desenvolvimento psicológico dos personagens. O mais importante seria delimitar o perfil criado pelos atores. Logo de início, Joaquim se apresenta como um homem cruel, por ter assassinado a própria mulher.
Ao cabo de duas horas, ele não muda de perfil, segue sendo o mesmo vilão. "É muito difícil montar uma peça assim, porque os atores precisam entender muito o texto para transmitir a clareza necessária", afirma Neves. "Foi preciso limpar a cena, ser simples para atingir a complexidade que a história demanda."
De certo modo, a peça sintetiza os elementos do movimento armorial, empreendido por Suassuna nos anos 1970. Na época, o autor procurou fundar uma arte nordestina popular, calcada em elementos eruditos, que valorizasse a cultura heráldica ?as tradições familiares, seus emblemas e estandartes.
O romanceiro popular, ou seja, a literatura oral, versificada, para ser cantada ao som de viola ou recitada, está no centro de "Uma Mulher Vestida de Sol" e de todo o movimento armorial. Para a trilha sonora da peça, a compositora Renata Rosa criou canções inspiradas em pesquisas sobre a música popular nordestina.
À primeira audição das composições, se torna evidente a ligação entre o romanceiro nordestino e o ibérico. Ao cantar, os atores floreiam a forma fixa dos versos com o vibrato da música árabe, remetendo à influência moura na Europa durante a Idade Média.
Manuel Dantas, filho de Suassuna, assina a cenografia, toda armorial, com as coxias sendo feitas de renda e brasões, que demarcam as duas famílias inimigas da trama. Ao fundo, as cores terrosas transmitem a aridez do sertão.
Para a montagem, Neves resolveu tirar de cena as mortes, preferindo narrá-las. O procedimento encurta a história (a peça original tem cerca de três horas) e potencializa a natureza épica do texto. O próprio romanceiro nordestino preconizava a volta à epopeia como instrumento de narração do cotidiano popular.
"Suassuna sai da ação para a narração, assim como os seus diálogos pretendem demonstrar a história acontecendo", diz o diretor. Por isso, Manuel anuncia morte por morte. No sertão, o jagunço é o anjo exterminador.
UMA MULHER VESTIDA DE SOL
Quando Até 12/2; sáb. e dom. 17h
Onde CCBB - r. Álvares Penteado, 112
Preço R$ 15
Autor Ariano Suassuna
Elenco Guryva Portela (Joaquim Maranhão), Marcello Boffat (Antônio Rodrigues), Jorge de Paula (Juiz e Francisco), Bruna Recchia (Rosa), Kátia Daher (Cícera e Inocência), William Amaral (Delegado, Gavião e Martim) e Carlos Ataíde (Manuel e Donana).
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