SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há uma década, quando Dilma Rousseff tentava aprovar seu plano para que os royalties do pré-sal se convertessem em melhorias na educação e na saúde, Adirley Queirós e Joana Pimenta viram a oportunidade perfeita para tocar num tema com o qual já flertavam -o petróleo e a ideia plantada lá atrás por Getúlio Vargas de que ele "é nosso".
Mas quem está por trás desse "nosso"? "Mato Seco em Chamas", novo trabalho da dupla de diretores, quer justamente questionar essa apropriação, e é rápido ao ressignificar a frase de efeito getulista, transformando o lema num popular e potente "o petróleo é de nóis".
"Nós queríamos pensar o que essa lei dos royalties poderia fazer pelo país, no que resultaria uma apropriação verdadeiramente popular dessa riqueza", afirma Pimenta, portuguesa que mora nos Estados Unidos e já passou oito anos trabalhando no Brasil.
"Mas, no meio de tudo isso houve a eleição do Bolsonaro, e, quando começamos a filmar, a proposta inicial se tornou anacrônica, já não falávamos mais de algo possível. Então o longa virou uma trama do petróleo como desobediência civil."
Daí surgiu o perfil mais combativo e inquieto das personagens do filme, uma gangue de mulheres que não viu nas escolas e hospitais a promessa que o ouro negro trazia. Por isso, decidiu combater a classe política, roubando o petróleo extraído perto de Ceilândia, mais precisamente da favela de Sol Nascente, nos arredores de Brasília, e usando o combustível em benefício próprio e da comunidade.
Em cima de suas motos, as "gasolineiras" rondam a região com pose de quem manda naquilo tudo, lembrando a imagem do tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro. Ali no Centro-Oeste, no entanto, a realidade é outra, mas isso não quer dizer que não existam vácuos de poder por meio dos quais a gangue exerce sua influência.
"Mato Seco em Chamas" tem alma de "Robin Hood" e estética de "Mad Max: Estrada da Fúria". Todos seguem a cartilha do pobre que rouba do rico para dar ao pobre, seja petróleo, ouro ou água. O clima de terra sem lei remete ainda ao faroeste americano, gênero no qual a dupla de diretores se inspirou não só na hora de conceber a trama aventuresca, como também nos planos que enquadram com intimidade os rostos do elenco.
Este é formado por atores não profissionais, numa curiosa mistura de documentário e ficção que permeia todo o projeto. Chitara, Léa e as outras "gasolineiras" foram inspiradas nas próprias mulheres que as interpretam, a partir de relatos que entraram aos poucos na trama. Havia um roteiro como molde, mas o objetivo era recorrer o mínimo possível a ele, o que tornava o dia no set tão incerto quanto a perfuração do solo em busca de riquezas.
Muitos dos relatos de passagens pela prisão, dos lamentos por parentes envolvidos no crime, dos desejos amorosos e sexuais e da escolha de como se divertir, do baile funk a um "rodízio de mulheres", bebem da vida real das agora atrizes Débora Alencar, Léa Alves da Silva, Joana Darc Furtado e tantas outras. Apenas o final era inflexível -o combinado com elas era que as "gasolineiras" sairiam, de alguma forma, vitoriosas.
Exibido no Festival de Berlim do ano passado, "Mato Seco em Chamas" tem caráter popular, afinal. Queirós e Pimenta queriam capturar o povo e, por isso, preencheram o trabalho com cenas bastante calcadas na realidade de Ceilândia, paisagem-fetiche do primeiro cineasta, que já a enquadrou nos premiados "Branco Sai, Preto Fica" e "Era Uma Vez Brasília".
É de lá que veio Michelle Bolsonaro, fato que Queirós gosta de destacar. "Vivemos sob uma contradição, porque a ex-primeira-dama é uma mulher da quebrada", afirma. Os apoiadores do ex-presidente, aliás, aparecem numa cena documental, numa manifestação que a equipe só conseguiu gravar depois de dizer que trabalhava para uma emissora alemã.
Os anos que separam o governo Dilma Rousseff do atual renascer petista podem ter inviabilizado a proposta original de Queirós e Pimenta, mas, por outro lado, forneceram material para que a dupla não só costurasse ficção e realidade com veemência, mas também deixasse o material ganhar vida própria depois de lançado.
É possível ver ecos da crise do preço da gasolina do ano passado na insatisfação das protagonistas e dos motoboys que compõem seu mercado consumidor. De forma semelhante, certo rancor em relação à Petrobras pode aparecer na interpretação de espectadores cientes de que a estatal cortou, a partir de 2019, uma série de patrocínios na área da cultura.
Especialmente afetado, o cinema, nas figuras de Queirós e Pimenta, parece também gritar que "o petróleo é de nóis", usando a trama de "Mato Seco em Chamas" como um combustível metafórico para a briga política que abocanhou a cultura em anos recentes.
MATO SECO EM CHAMAS
Quando Estreia nesta quinta (23), nos cinemas
Elenco Léa Alves da Silva, Débora Alencar e Joana Darc Furtado
Produção Brasil, Portugal, 2022
Direção Adirley Queirós e Joana Pimenta
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