SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Foi com certa surpresa que o Festival de Berlim recebeu, há um ano, a notícia de que um filme falado em catalão havia vencido o Urso de Ouro, um dos prêmios mais cobiçados da cinematografia. Intimista, simples e pertencente a um universo cultural sem muita tradição na indústria, "Alcarràs" foi o campeão improvável.

Carla Simòn, sua diretora, tampouco esperava levar a honraria. Era apenas seu segundo longa-metragem, e a espanhola competia com as grifes Claire Denis, François Ozon e Hong Sang-soo. Jamais pensara, lá atrás, que o drama familiar filmado com gente comum, no meio de uma plantação de pêssegos, conquistaria tanta gente.

Bem lá no fundo, "Alcarràs" é uma história sobre temas universais, diz ela, apesar da roupagem bastante específica. Todo país tem uma agricultura, e toda família que trabalha com agricultura está ameaçada por avanços tecnológicos. E isso tem potencial de falar com muita gente.

Ela frisa, no entanto, que a alma do longa está na parentada protagonista e em seus dramas, os individuais e os compartilhados, sendo a plantação de pêssego ao redor apenas um canalizador de energias, frustrações e anseios.

Em "Alcarràs", uma família da zona rural da Catalunha se vê ameaçada quando o dono da propriedade onde moram e trabalham morre. Seus herdeiros, que têm pouca relação com os pêssegos cultivados ali, decidem vender a terra para uma empresa de painéis de energia solar, desencadeando uma crise no grupo que há gerações molda a identidade cultural daquele pedacinho no norte da Espanha.

Há o avô, que preparou o rebento para assumir a plantação e sofre em silêncio; o trio de irmãos, formado por um que se recusa a aceitar a mudança, outro que já assimilou a derrota e uma terceira que foi viver na cidade grande; as esposas, que complementam a renda fazendo compotas e doces, e os filhos de diferentes idades.

"Alcarràs" é carregado pela harmonia e a tensão que exalam deles e, por isso, a busca pelos atores foi longa. Formado inteiramente por não profissionais, o elenco foi selecionado depois que Simòn recebeu 9.000 pessoas em audições na Catalunha. Inicialmente, ela queria parentes de verdade, mas acabou não encontrando o talento necessário num só clã.

O idioma catalão era visto como uma necessidade para garantir autenticidade ao projeto, por isso ela optou pelo uso de locais, e não de atores importados de regiões mais urbanizadas. Depois de escolhidos, eles passaram quatro meses em ensaios, a fim de criar a união familiar que a câmera, depois, captaria.

Para isso, Simòn pediu que todos encontrassem espaço em suas vidas "normais" para se reunirem com certa frequência e fazerem tarefas rotineiras juntos, como tomar café da manhã, ir às compras ou ajudar as crianças na lição de casa. Depois, ela simulou no set a história prévia dos personagens, montando cenas nunca gravadas a partir de fatos passados que só são mencionados no roteiro.

Foi trabalhoso, ela assume, mas claramente valeu a pena, não só pelos prêmios e festivais internacionais, mas também por ter mostrado uma história verídica e ignorada que se repete aos montes naquela região da Catalunha.

Nascida em Barcelona, Simòn também viveu algo semelhante. Aos seis anos, ela se mudou para o campo, nos arredores de Alcarràs, e foi revirando o passado que ela teve a ideia para o roteiro. A partir da morte de seu avô, a cineasta passou a questionar o que aconteceria se a memória coletiva que sua família construiu também morresse de uma hora para outra.

"Depois, tudo fluiu muito naturalmente, porque esse é um retrato real da minha família e de muitas outras", afirma, citando especificamente os painéis solares como uma das ameaças aos campos de pêssegos e outras frutas que colorem a região.

"Escolhi os painéis para o filme porque eu queria deixar essa discussão mais complexa. Eu não queria uma abordagem maniqueísta, do bem contra o mal. Há um bom motivo para que queiram expulsar aquelas famílias de lá, porque precisamos de energia limpa. Eu queria pôr o espectador nessa posição de compreender os dois lados, de questionar tudo o que vê."

Há ao menos mais um longa que Simòn pretende gravar na zona rural da Espanha, finalizando uma trilogia formada ainda por "Verão 1993", também premiado em Berlim, em 2017. As relações familiares seguirão no centro deste próximo projeto e, provavelmente, de outros.

Memória, história e comunidade são temas dos quais a cineasta não pretende fugir, mesmo que depois vá gravar uma ficção científica, diz.


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