LOS ANGELES, ESTADOS UNIDOS (FOLHAPRESS) - Laura Poitras e Nan Goldin são documentaristas, cada uma à sua maneira. Poitras, indicada ao Oscar três vezes, se especializou em situações arriscadas para revelar irregularidades do governo dos Estados Unidos. Já Goldin, uma das maiores vozes da fotografia de sua geração, mergulhou nos excessos do universo queer ao capturar a intimidade de amigos e amantes.

As duas juntaram forças para produzir o documentário "All the Beauty and the Bloodshed", um retrato extremamente pessoal como as imagens consagradas de Goldin, mas também político e arriscado como os filmes de Poitras. O documentário, ainda sem previsão de estreia no Brasil, está na disputa do Oscar, após ser o segundo na história do Festival de Veneza a ficar com o prêmio principal.

Além da vida e arte de Goldin, o filme mostra a campanha da artista contra uma das famílias mais poderosas dos EUA, os Sackler. Eles são donos da fabricante de um dos medicamentos responsáveis pela epidemia de opioides no país, uma droga da qual Goldin quase morreu de overdose. A família, que escondeu o teor viciante do remédio por décadas, tem presença frequente em museus e galerias de arte, lavando seu "dinheiro de sangue" com filantropia tóxica.

Este é o primeiro longa de Poitras centrado numa mulher e artista. "São pessoas corajosas que resolveram atacar estruturas de poder. São encrenqueiras, e sentem um certo prazer em causar", diz Poitras à Folha com um sorriso, ao ser questionada sobre a semelhança dos protagonistas de seus filmes, incluindo Goldin e Edward Snowden, de "Citizen Four", de 2014, sobre o sistema de espionagem global dos EUA.

Ela também dirigiu "My Country, My Country", de 2006, sobre um médico sunita no Iraque tomado pelos EUA, e "My Oath", de 2010, sobre um ex-guarda-costas de Osama bin Laden, ambos partes de sua trilogia pós-11 de Setembro.

"Eles também têm uma incrível rejeição a mentiras e injustiças. Mas há muitas diferenças. Nan é uma artista. Tem uma bravura emocional que é única."

A fotografia surgiu na vida de Goldin como um bote salva-vidas. A câmera lhe deu uma personalidade e permissão para estar lá. Ela clica todos ao redor, em imagens famosas das cenas gays de Boston e Nova York dos anos 1970 e 1980, regadas de sexo e drogas. O documentário apresenta os amigos retratados, fala das tragédias familiares e, pela primeira vez, de suas incursões na prostituição.

Hoje com 69 anos, Goldin é uma mulher de voz rouca fragilizada, mas determinada a fazer a diferença, nem que isto custe sua carreira. O medo é palpável quando ela invade museus pelo mundo fazendo performances contra os Sackler -centenas de frascos de comprimidos são arremessados pelo vão do Guggenheim de Nova York-- ou quando começa a ser perseguida por um espião da família.

Experiente no assunto espionagem, Poitras, de 59 anos, diz que chegou a abordar o indivíduo que ficava horas com o carro estacionado em frente ao apartamento de Goldin e tentou ainda convertê-lo para sua causa, sem sucesso. "Eles usavam táticas de intimidação, uma coisa meio de bandidagem. Não estavam preocupados em esconder."

"É um pouco diferente da Agência Nacional de Segurança e do governo dos EUA. Eles tentam ser um pouco mais discretos e têm uma capacidade de vigilância muito maior", acrescenta a diretora, que chegou a ser incluída na lista de alerta de terrorismo do governo norte-americano.

Quem não acompanhou a luta de Goldin contra os Sackler pode se surpreender com o final. Após mais de um ano de ativismo e silêncio dos museus, Goldin arranca vitórias surpreendentes com ajuda dos membros do grupo PAIN, que criou há cerca de cinco anos.

"É incrível poder ver por dentro como Nan fez isso acontecer, seus desafios, os sucessos, as tensões. É importante entender as falhas no sistema e ver como algo normalizado por décadas é, de repente, inaceitável na sociedade."

Fã do trabalho de Goldin, Poitras se sentia intimidada pela fotógrafa. Ao saber da campanha contra os Sackler, tomou coragem para perguntar por email se ela precisava de ajuda. A artista já vinha filmando suas intervenções e lhe deu as boas-vindas.

"Fiquei obcecada com o PAIN. Você não vê isso o suficiente na sociedade, gente com este tipo de poder cultural querendo fazer a diferença", diz. "É um sintoma de sociedade doente ter uma corporação que promove uma droga minimizando seu teor viciante e causando tantas mortes. E o governo não faz nada. Simplesmente permite que eles continuem fazendo dinheiro."

A empresa controlada pelos Sackler, Purdue Pharma, declarou falência em 2019. O filme acusa a família de retirar mais de US$ 10 bilhões da farmacêutica, e os membros respondem que mais da metade foi para impostos e reinvestimento em outras empresas.

Poitras assina a direção, mas as duas são produtoras. "Foi ela quem começou o filme", diz. "É baseado em sua vida pessoal e sua obra. Ficaria muito usurpador não torná-la parceira de forma significativa."

Desde o começo, Goldin se abriu completamente para Poitras, narrando, por exemplo, o suicídio de sua irmã nos anos 1960 e a completa inaptidão de seus pais. A confiança veio de um acordo entre as duas.

"Mostrava para a Nan cenas antes de exibir para um grupo maior além da sala de edição. Isso nos permitiu conversar com liberdade", diz Poitras, que, ao contrário de Goldin, não revela nada publicamente sobre sua vida pessoal. "Ela pediu para voltar em alguns assuntos, mas para acrescentar e para complicar mais."

Foi o caso da relação de Goldin com Brian, que estampa o livro de seu trabalho mais conhecido, "The Ballad of Sexual Dependency", que começou como um show de slides e música. Após o fim de anos de relação, Brian espanca e quase cega Goldin ao vê-la com uma mulher. Ela faz do rosto machucado uma série de fotos.

"Havia mais do que um ato de violência. Nan queria mostrar a relação que havia por trás, a história de amor, que eles não sabiam como terminar e estavam entrelaçados. Havia muitas camadas de complexidade", diz Poitras. "Nada disso estava na nossa conversa inicial. Achei generoso da parte dela."

Goldin é fonte de inspiração para Poitras, e não só por conta de seu ativismo ou de sua honestidade. "Há uma qualidade cinematográfica arrebatadora em seu trabalho, tanto o enquadramento e a luz quanto a sequência dos slides e o uso de música", diz ela.

E tem também a metodologia. Se algum amigo pedisse, Goldin deixava que ele destruísse a foto. "Nan fotografa seus amigos, e todos têm agência na relação. É algo importante que queria trazer ao documentário: respeitá-la do mesmo jeito que ela fotografa."


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