SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando Ai Weiwei foi preso pelo governo chinês, oficiais colocaram o artista no banco traseiro de um carro e o forçaram a esconder seu rosto com um capuz preto no qual estava escrita a palavra "suspeito". Depois de dias de longos interrogatórios, ele foi levado a um quarto de 25 metros quadrados num centro de detenção.
Naquele espaço, ficaria por meses, sempre acompanhado de agentes de segurança, sem poder se comunicar com sua mãe e sua família. "Ser cortado de qualquer contato com o mundo exterior era a pior parte de estar preso, tornando os ideais e pensamentos políticos sem sentido e em vão", diz o artista, em entrevista por email.
"A humanidade e os direitos humanos são bens públicos partilhados que requerem a defesa de todos. Sem o contato mais básico com o mundo exterior, seria ridículo falar em fazer arte."
O episódio da prisão é narrado com riqueza de detalhes por Weiwei, defensor contumaz dos direitos humanos, num livro com as suas memórias lançado pela Companhia das Letras, "Mil Anos de Alegrias e Tristezas". A tradução para o português foi feita a partir da versão original da obra, em inglês, publicada em 2021.
Em 19 capítulos e cerca de 350 páginas, o volume conta a história dos 65 anos da vida do artista em ordem cronológica, incluindo descrições das visitas intimidadoras de agentes de segurança do Partido Comunista Chinês ao seu ateliê nos arredores de Pequim, que culminariam na sua prisão, em 2011.
Por mais que tenha feito carreira internacional com trabalhos denunciando a mão pesada de Pequim, Weiwei é taxativo ao afirmar que o governo, a política e a cultura de seu país natal foram as principais influências que moldaram o seu trabalho. "Sem essas experiências formativas, eu não seria o artista que sou hoje".
As suas experiências com o Partido Comunista chinês afastam o texto de ser apenas uma sucessão de fatos na vida do artista, um diário confessional, e emprestam à história interesse geopolítico à medida que elas podem ser ampliadas para incluir seus conterrâneos. O leitor vê mais concretamente como é crescer e viver no regime comunista.
Weiwei nasceu em 1957, ano em que o regime de Mao Tse-tung desencadeou uma campanha de expurgo de intelectuais de direita críticos ao governo. Seu pai, o poeta Ai Qing, era um deles -o título do livro é o verso de um poema seu.
Exilado em um campo de trabalho em Xinjiang, Ai Qing limpava latrinas com fezes que viravam uma coluna de gelo nos meses de inverno e sofria todo tipo de humilhação por parte dos agentes chineses. Enquanto isso, seu filho, então com dez anos, construía o fogão e buscava água para a comida.
A formação artística de Weiwei se daria em Nova York, para onde ele se mudou na década de 1980, num período em que poucos chineses viajavam ao exterior. Em Manhattan, ganhou uma bolsa para estudar na Parsons School of Design, da qual foi expulso por entregar uma prova de história da arte em branco.
Enquanto vivia uma vida errante, em meio à sujeira, à degradação e à desordem na parte sul da ilha, como escreve, ganhava a vida desenhando retratos de pessoas na região da Times Square -há uma série de fotos daqueles anos no livro.
Ao circular no meio artístico da cidade, fez amizade com o poeta Allen Ginsberg e conheceu a teórica Susan Sontag. Ele conta que nos seus anos em Nova York tinha pouco dinheiro e um inglês mais básico, mas que não via essas limitações como impeditivos.
"Isto naturalmente me distanciou de tudo o que acontecia à minha volta na cidade. Observei o mundo como se observa peixes num aquário, o que me forneceu uma perspectiva única como espectador. Essa perspectiva permaneceu comigo mesmo anos depois que voltei para a China."
No Museu de Arte da Filadélfia, o artista escreve ter entrado em contato com o trabalho de Marcel Duchamp, experiência que o fez descobrir que não queria ser pintor. O surrealista dava ênfase à arte como uma experiência intelectual, escreve Weiwei, e não meramente visual, que se tornaria uma inspiração para mim ao longo de toda a minha vida.
Quem conhece o trabalho de artista chinês vai saber pelo livro como surgiram as ideias para algumas de suas obras mais conhecidas, como a performance em que quebrou uma urna de 2.000 anos da dinastia Han e a fotografia em que mostra o dedo do meio para a Praça da Paz Celestial, palco de um massacre histórico de estudantes em 1989.
Desde aquela década, por mais que a globalização tenha transformando drasticamente a sociedade chinesa, a política segue a mesma, conta o artista.
"Através do rápido desenvolvimento, a China se tornou mais rica e forte do que nunca, mas isso resultou em cegueira prevalente na sociedade. O principal objetivo do partido é manter seu poder de governo, o que significa que é improvável que ocorram mudanças."
Ou seja, não ficou mais fácil seguir a carreira de artista na China. "A censura e o controle do Estado se tornaram mais rigorosos e eficazes em vários meios, como texto, arte, filmes e internet, impactando a qualidade de vida de todos", diz.
Questionado sobre como encarou os enormes protestos contra a política de Covid zero do líder Xi Jinping, um raro levante público contro o regime, ele afirma que é precioso ver os jovens expressando abertamente as suas opiniões.
Naqueles atos do fim do ano passado, grupos iam às ruas de várias cidades da China segurando folhas de papel em branco, sem mensagem alguma, para tentar evitar a represália das forças de segurança.
Mas seu otimismo para por aí. Muitos manifestantes foram detidos e desapareceram, possivelmente acusados de estimularem a subversão do poder do Estado, diz o artista.
"É provável que esse tipo de rebelião ocorra repetidamente, mas o governo chinês usará medidas rigorosas para dissolver e prender indivíduos que se rebelarem, não importa quão frequentes e em grande escala sejam os protestos. Hong Kong [onde protestos em massa em 2019 foram duramente reprimidos] é o melhor exemplo."
**MIL ANOS DE ALEGRIAS E TRISTEZAS**
Preço R$ 99,90 (384 págs.); R$ 49,90 (ebook)
Autor Ai Weiwei
Editora Companhia das Letras
Tradução Camilo Adorno
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