FOLHAPRESS - Talvez em algum lugar injusto do imaginário popular, Vanessa da Mata tenha parado no tempo, naquela primeira década deste milênio, quando capitaneou o zeitgeist da nova safra de vozes da MPB com seus três primeiros álbuns -"Vanessa da Mata", de 2002, "Essa Boneca Tem Manual", de 2004, e principalmente "Sim", de 2007.
Um erro compreensível, mas ainda um erro. Talvez o culpado seja a cantora ter atingido o auge no momento em que o tabuleiro da música mudou drasticamente com a chegada de novas peças ao jogo, como as plataformas de streaming e a criação de nichos musicais a partir da internet.
Mas Vanessa não ficou parada. Ela se desafiou quando cantou Tom Jobim e escreveu o livro "A Filha das Flores", além de ter gravado mais álbuns, com os quais foi indicada ao Grammy Latino duas vezes.
Recém-lançado, "Vem Doce", seu oitavo álbum, é o reflexo de uma artista em ótima forma, desprendida de modismos e maneirismos, capaz de exprimir o que tem de melhor -uma voz flutuante e composições que não desgrudam do chão, que tratam de um Brasil real, cru e distante do imaginário do Leblon dos folhetins de Manoel Carlos tantas vezes traduzido pela música popular tradicional.
"Vem Doce" é um disco político, com maior ou menor carga, a depender da faixa. Vanessa deixa sua caneta livre para cantar amores ou dissabores sociais. "Foice", a segunda música, é dolorida como o pingar de gotas de limão na ferida. Nela, ela narra a luta diária de quem tem que comprar comida na xepa da feira pelo baixo preço.
O disco também é um ato político quando cria uma versão marota de "Comentário a Respeito de John", composição de Belchior e José Luiz Penna. Em um dueto embalado pela cadência de um xote dengoso, Vanessa e João Gomes, fenômeno do piseiro, adicionam uma carga de luz e otimismo à dor da solidão trovoada pela voz original do filho de Sobral.
"Comentário a Respeito de John", aliás, é a única das 13 faixas de "Vem Doce" a não levar a assinatura da artista. De resto, Vanessa usa o gosto pela palavra e pela prosa para criar as histórias de "Vizinha Enjoada", "Gêmeos", "Menina (Deus te Dê Juízo") e "Amiga Fofoqueira". Cada uma integra o multiverso criativo de Vanessa, com maior ou menor impacto.
Já "Fique Aqui" tem jeito, gosto e textura de hit. Ao narrar um último suspiro de um amor, a faixa ganha com as intervenções de L7NNON, o rapper que despontou no ano passado ao mostrar uma invejável flexibilidade estilística no TikTok.
"Vem Doce" é um disco que foge de linearidades rítmicas, algo que passa sem percalços em quase todos os momentos. O tropicão se dá quando o desamor denso de "Fique Aqui" resvala em "Amiga Fofoqueira", música de energia oposta, divertida, incluída logo na sequência. É claro que, em tempos de playlists, a ordem das músicas deixa de ser importante, mas o salto prejudica a audição em sequência.
"Me Liga" se junta a "Fique Aqui" como outra canção de desamor do álbum. Aqui, contudo, não há dissabor. Pelo contrário. "Me Liga" trata daquela saudade gostosa, até safada, tal qual os "beijos loucos no meio do povo" cantados por Vanessa, que transformou a mensagem de "oi, sumido" em uma canção de quase três minutos embalada por um reggaezinho suave.
Faixa de abertura e título do álbum, "Vem Doce" traz versos atrevidos e sedutores, mas o que importa ali são os agudos colossais explorados por Vanessa com facilidade de causar inveja.
No auge da sua maturidade vocal e dotada de uma boa dose de coragem ao experimentar formas distintas de contar histórias em suas composições, Vanessa faz da experiência de ouvir "Vem Doce" uma aventura por ritmos, gêneros e sabores --às vezes doces, às vezes azedos, como a vida.
**VEM DOCE**
Onde Nas plataformas de streaming
Autor Vanessa da Mata
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