SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando "O que É Meu", livro de José Henrique Bortoluci publicado pela Fósforo, chegou às livrarias brasileiras, já tinha caminho traçado para ocupar estantes de outros dez países. A estreia do sociólogo na literatura tinha atraído o interesse de editoras internacionais antes mesmo da repercussão no Brasil, um caso bastante raro.
A obra é um ensaio biográfico escrito a partir de entrevistas que o autor fez com seu pai, que trabalhou como caminhoneiro por 50 anos. A vida da família corria em dois núcleos. Um era em Jaú, onde a mãe acumulava funções para garantir a sobrevivência de dois filhos, e a outra Brasil afora, em jornadas de trabalho que desconheciam começo e fim.
José Bertoluci pai, o Didi, encarna uma figura ao mesmo tempo fundamental e renegada da história brasileira, ignorada nas narrativas nacionais ou condensada em um estereótipo abstrato, como na série "Carga Pesada". O livro dá nome e individualidade para o caminhoneiro, o que pode ajudar a entender a relevância que ganhou mundo afora.
O sucesso da obra encontra ecos no de Annie Ernaux, vencedora do Nobel de Literatura do ano passado. Ambos retratam o fosso que separa os filhos que ascenderam socialmente de seus pais, além de discutirem o processo de escrita dentro da própria obra e retratarem a história de seus países através da própria vida.
Ainda antes de o livro estar pronto, Rita Mattar, diretora editorial da Fósforo, pediu a Bortoluci um esboço do que ele planejava escrever. Embora fosse incompleto e curto, o rascunho já carregava o espírito da versão definitiva. A editora traduziu o texto para o inglês e enviou para editores estrangeiros, que se interessaram e ficaram à espera da obra completa.
"O que É Meu" ficou pronto a tempo de acompanhar a Fósforo na Feira de Frankfurt do ano passado. Maior evento do mundo para o mercado editorial, a feira é um ambiente intenso de negociações. A editora entregou então a versão final às casas estrangeiras.
Em menos de seis meses, os direitos de publicação já tinham sido vendidos para Inglaterra, França, Itália, Suécia, Holanda, Portugal, Dinamarca, Alemanha, Noruega e Espanha, além de alguns países da América Latina.
A história cheia das chagas e marcas de Didi é, por metonímia, também a história de um país que priorizou as estradas a outras meios de transporte e a ideia de um suposto progresso acima de tudo, sobretudo durante a ditadura militar, quando a Transamazônica começou a ser construída.
É também uma história sobre masculinidade, paternidade, sobre o câncer que ameaçou levar o pai do escritor enquanto a obra era escrita e sobre a ascensão social de Bortoluci, filho de pais que não tiveram acesso ao ensino superior e que, por meio de um esforço coletivo, fez carreira na academia até se tornar doutor pela Universidade de Michigan e professor na Fundação Getúlio Vargas.
Bortoluci já queria escrever sobre seu pai antes da carreira acadêmica. Na escola, lia muito sobre história do Brasil e percebia a diferença entre a versão dos livros e a de seu pai sobre episódios como a própria construção da Transamazônica.
A vontade cresceu com a greve dos caminhoneiros de 2018 e a eleição de Jair Bolsonaro. O professor, que já estudava crises da democracia, quis abordar o tema através da profissão de seu pai. "Bolsonaro abraçou um projeto de morte, devastação ambiental e destruição da classe trabalhadora. Não foi um governo popular. Pelo contrário, foi um governo de ataque aos trabalhadores."
Bortoluci vinha lendo obras de autores de autoficção e não ficção literária que influenciaram sua escrita, como Didier Eribon, Édouard Louis, Chris Kraus e Maggie Nelson, além de Ernaux. Quando finalmente começou a escrever, fez isso entre duas devastações --uma delas, a aliança da pandemia de Covid-19 com o governo Bolsonaro, e a outra, o câncer de seu pai, que surgiria pouco depois da chegada do vírus.
No mesmo dia em que pediu as entrevistas ao pai, ouviu queixas de suas dores no abdômen. A partir daí, escreveu entre a apreensão de várias cirurgias e longas horas em salas de espera de hospitais. Foi como se a doença tivesse colonizado o livro, nas palavras do autor.
O câncer mudou a natureza de "O que É Meu". Bortoluci começou a escrever um diário depois do diagnóstico, e muitas de suas confissões extravasaram para a obra. O tratamento também aumentou a intimidade com o pai.
"Eu não tinha alternativa. O livro se tornaria mais pessoal. Seria um livro que refletiria sobre sua própria escrita", diz. "Em cada consulta, a gente ficava quatro, cinco, seis horas na espera, para uma consulta que às vezes durava dez minutos."
Bortoluci se lembra das noites passadas no hospital com o pai internado, quando o ajudava a se vestir e a tomar banho. "É um contato muito íntimo com o corpo do doente, que você só tem nesse tipo de situação, de um pai que precisa de seu cuidado", afirma. "Isso foi muito transformador na minha vida, na minha relação com meu pai e também como escritor."
A tragédia que todo o país vivia, com o governo Bolsonaro, e aquela que era só de sua família, o câncer, se cruzaram. O caos do sistema de saúde e o atraso da vacinação eram riscos a mais em um tratamento já delicado para um paciente que, além de oncológico, era cardiopata e obeso, o que fez o medo de Bortoluci aumentar.
Bortoluci diz acreditar que, para além de responsabilizar os agentes do caos na Justiça, precisamos da arte para digerir a história recente do país. "Meu livro é um grão de areia nesse castelo que a gente tem que construir para lidar com essa experiência brutal que a gente teve no Brasil nos últimos anos."
O QUE É MEU
Preço R$ 59,90 (144 págs.); R$ 39,90 (ebook)
Autor José Henrique Bortoluci
Editora Fósforo
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