SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há pouco mais de um ano, o vocalista Bono declarou, em um podcast da revista Hollywood Reporter, que tinha vergonha da maioria das canções de sua banda, o U2. "Já aconteceu de estar dentro de um carro e uma das nossas músicas começa a tocar no rádio. Acabei ficando vermelho, muito envergonhado. Falando sério, a maioria delas me deixa ligeiramente constrangido", disse.
Pois a julgar pelo álbum que o U2 lançou nesta sexta-feira (17), nas plataformas musicais de streaming, ele deveria mesmo ficar chateado. "Songs of Surrender" é, de longe, o álbum mais inútil, chato e autoindulgente de uma carreira que já há algum tempo tem trafegado pelo domínio de adjetivos pouco lisonjeiros.
"Songs of Surrender" não traz nenhuma canção nova. É uma releitura de 40 músicas da banda em formato intimista. Se você ainda não começou a suar ao ler isso, vale dizer que são duas horas e 46 minutos de festinha de piscina, o equivalente, talvez, a um álbum quádruplo.
E que som emana desse trabalho? Na maior parte, o disco parece emular a praga das releituras de canções de rock pesado em ritmo de bossa nova que assolou os beach hotéis no início do século. No entanto, não há aqui nem rito de bossa nova nem uma moça de voz fofa sussurrando a letras, e sim Bono. Ele sussurra no ouvido e também sofre e geme aqui e acolá.
E não se furta a soltar a voz em algumas peças, como em "Bad" e "Vertigo". Em outras, um coro gospel o acompanha, a exemplo de "Beautiful Day" e "Pride (In the Name of Love)", tratando de tornar o clima mais evidentemente messiânico.
Quanto à instrumentação, é aquela coisa: violões e pianos substituem as guitarras e baixos e tudo parece destinado para ser tocado em acampamentos. A cada música enfrentada, a sensação que acentua é que a egotrip do crooner foi longe demais.
Em muitos momentos, a impressão que dá é que estamos ouvindo as canções originais da banda, mas, brincando na mesa de som, abaixamos todos os instrumentos e aumentamos apenas o canal do microfone. Daí a inutilidade total de "Songs of Surrender".
A ideia de Bono de calar sua banda e aumentar o próprio volume pode ter vindo de uma recente constatação de vitória pessoal. "Eu só me tornei um cantor de verdade recentemente", ele disse na mesma entrevista em que declarou ter vergonha de parte de suas músicas. "E talvez, para os ouvidos de algumas pessoas, isso ainda não tenha acontecido, e eu entendo". Eu também entendo.
O disco também ganhou um especial de TV da Disney+, apresentado por David Letterman, que se aposentou, só que não. Chamado "Bono & The Edge: A Sort of Homecoming com Dave Letterman", o especial tem metade da duração do disco e também estreou nesta sexta.
Para não dizer que há perseguição nesta crítica, é fato que algumas canções funcionam no formato. "Get Out of Your Own Way" e The Miracle (of Joey Ramone)" são pontos altos. Mas meio que acaba por aí.
Pontos baixos estão em "One", "Where the Strees Have no Name", "Walk On", "Stuck in a Moment You Can't Get Out of", "I Still Haven't Found What I Looking For", "The Fly", "Desire" -essa está horrível-, "With or Without You" e por aí vai. Este texto já está quase estourando o tamanho pedido e o álbum de 40 músicas não termina...
40, aliás, parece ser um número caro aos irlandeses Bono, o guitarrista The Edge, o baixista Adam Clayton e o baterista Larry Mullen Jr.. "40" era o nome da música que fechava o terceiro álbum, "War", que, puxado pelo hit mundial "Sunday Bloody Sunday", elevou o U2 a uma banda relevante em 1983.
É a mesma música que fecha esse disco novo e, de lá para cá, ora bolas, são 40 anos, o que provavelmente é apenas coincidência. Mas 40 também foi o número de capítulos de "Surrender - 40 Canções, Uma História" a autobiografia de Bono lançada no ano passado, em razão da qual ele deu entrevista à Folha de S.Paulo.
No livro, ele conta sua história e a da banda a partir de 40 canções, que dão nomes aos capítulos. É difícil deixar de pensar que "Songs of Surrender", portanto, inclusive pelo título, não passa de um apêndice musical para o livro de Bono -apesar de as 40 canções do livro não serem exatamente as mesmas 40 do disco. Vinte e oito se repetem e doze mudam.
É espantoso, ao final, que esse álbum tenha passado pelo crivo e pelo controle de qualidade da banda, Além de ser, por diversos parâmetros, o pior trabalho do U2, periga também se inscrever no top 10 das maiores vergonhas que o mundo do rock'n'roll já presenciou.
Será ótimo se esse disco se tornar um fracasso comercial para que, assim, não dê ideias a outras bandas de cometerem o mesmo descalabro.
"Há uma razão egoísta em relação a este álbum", diz Bono a Letterman no programada Disney+. "Queríamos ouvir nossas músicas de novo como se fosse a primeira vez e questionar se elas poderiam sobreviver sem o poder de fogo de uma banda de rock como o U2."
Só não precisavam submeter o resto do mundo a provação tamanha.
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