TRANCOSO, BA (FOLHAPRESS) - Do Kremlin, Vladimir Putin planeja as comemorações dos 150 anos de Serguei Rachmaninov. Em janeiro de 2020, o presidente russo assinara um decreto instituindo um comitê para elaborar os concertos de aniversário do compositor.

Não havia vírus ou guerra, e o nome de um dos maiores pianistas da história seria muitas vezes lembrado por Moscou, que tentava defender a cultura russa do cancelamento ocidental.

"A apropriação política da música desse compositor é impossível, porque sua obra é um patrimônio da humanidade, mesmo tendo inspiração no folclore nacionalista", diz Olga Kopylova, pianista nascida na antiga União Soviética, atual Uzbequistão, que integra a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp.

Neste sábado, dia 18, a Osesp executa a "Sinfonia nº 2", de 1907, sob a regência do francês Louis Langrée. No mesmo dia, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Ospa, interpreta as "Danças Sinfônicas", de 1940.

Em 2023, a obra de Rachmaninov é lembrada pelas principais orquestras brasileiras. Na última quarta-feira, a Orquestra Sinfônica da Bahia, a OSBA, inaugurou as comemorações dos 150 anos do compositor no Festival Música em Trancoso.

Rachmaninov nasceu em Semionov, noroeste da Rússia. De família nobre, seus pais eram músicos amadores e donos de terras. Ele teve as primeiras aulas de piano com a mãe e, depois, ingressou no Conservatório de Moscou.

Ele se inspira na musicalidade do povo, sobretudo nos cânticos da igreja ortodoxa, para a construção de melodias derramadas. Transfigurando obras vocais para a música sinfônica, Rachmaninov compõe temas muito cantáveis, gerando identificação sentimental com a plateia.

Por isso, Putin briga com a física da música. Ele entende o poder de Rachmaninov. Desde 1992, o Kremlin tenta transportar seus restos mortais do cemitério Kensico, em Nova York, para a terra natal do compositor. A intenção foi reavivada, em 2015, pelo ex-ministro da Cultura da Rússia, Vladimir Medinsky, que acusou os americanos de "privatizar vergonhosamente" o túmulo do pianista. Na época, os descendentes de Rachmaninov se mostraram contrários à proposta do governo russo.

Na juventude, foi incentivado a compor por Tchaikóvski, um ídolo seu. Aos 18 anos, estreou o "Concerto para Piano nº 1". Em 1897, entrou em depressão, com o fracasso de sua primeira sinfonia. Voltaria aos holofotes com o "Concerto para Piano nº 2", um dos mais famosos da história.

Agora reverenciado pelo poder, Rachmaninov chegou a ter sua música banida da União Soviética. Em 1917, fugiu da Revolução Russa, deixando mulher e filhos para trás. Passou a morar nos Estados Unidos, onde morreu em 1943. No total, deixou três sinfonias, três óperas e, sobretudo, quatro concertos para piano. Sua obra data do romantismo tardio e descende da escola nacionalista russa.

A mais valiosa homenagem custa agora US$ 0,026. O Banco Central da Rússia colocou em circulação uma moeda de dois rublos com o desenho do rosto do compositor. Putin briga com a música, que, no tempo, se desassocia do espaço geográfico.

No Ocidente, o venezuelano Gustavo Dudamel, anunciado como o próximo maestro da Filarmônica de Nova York, regeu a Filarmônica de Los Angeles, num festival em homenagem a Rachmaninov, sediado há um mês no Walt Disney Concert Hall.

"Olha, elas nem são tão grandes assim", disse o pianista Leonardo Hilsdorf, dando a ver as suas mãos. Ele fazia referência à condição genética de Rachmaninov, que tinha mãos gigantes. Ele era capaz de tocar um intervalo de 13ª no teclado, construindo acordes infernais para a maioria dos pianistas da atualidade.

Terça-feira, dia 15. Cai a tarde em Trancoso. Sob uma árvore frondosa, Hilsdorf se acomoda num banco de madeira, esfalfado depois de mais um ensaio. Durante toda a semana, o pianista, que estudou com a portuguesa Maria João Pires, repassou solitariamente os temas que foram apresentados com a OSBA.

"Rachmaninov tinha uma noção absoluta de estrutura musical e antevia a arquitetura inteira das peças", afirma Hilsdorf. "Isso não vale só para a sua obra, cada peça tocada por ele é uma catedral única." Para a posteridade, o pianista russo deixou gravações de obras suas e de outros compositores, como Chopin e Schumann.

Ao tempo presente, os registros de Rachmaninov reacendem o debate, se as peças devem ou não ser executadas tal como nas gravações do autor. "Antes de estar na partitura, a música é som, não sei exatamente quais são os limites da interpretação nos dias atuais", diz Hilsdorf, que subiu ao palco para interpretar a "Rapsódia Sobre Um Tema de Paganini", de 1934. O programa da noite ainda previa o "Vocalise", de 1912.

Arquitetura contra arquitetura, a estrutura harmônica de Rachmaninov se impunha no Teatro L'Occitane, um anfiteatro grego do terceiro milênio desenhado pelo arquiteto de Luxemburgo François Valentiny.

Embora pressuponha liberdade formal, a "Rapsódia" de Rachmaninov é um trabalho de esteio racionalista. Na introdução, é apresentado o tema do "Capricho nº 24", composto em 1807 pelo violinista italiano Nicolo Paganini. Em seguida, o piano inicia um jogo de esconde-esconde com a melodia de Paganini em 24 variações do tema inicial.

Entre elas, se destaca a "Variação nº 18", que funciona como a imagem invertida da sequência "lá, dó, si, lá, mi", do "Capricho nº 24". A "Rapsódia" tem estrutura dramática, e a "Variação nº 18" é o clímax da narrativa. De extremado lirismo, a melodia foi definida pelo próprio Rachmaninov como o "encontro dos amantes", numa carta escrita ao coreógrafo russo Michel Fokine, que desejava criar um balé para a composição.

Kopylova, a instrumentista da Osesp, define o piano de Rachmaninov num tripé, formado por virtuosismo, riqueza melódica e harmonização, a gramática da linguagem do artista russo.

Já em suas composições, há um músico erudito, que se dispõe a se comunicar com grandes plateias. "É próprio do romantismo traduzir o folclore e exercitar todas as possibilidades melódicas", diz Carlos Prazeres, maestro da OSBA. Grosso modo, Rachmaninov poderia se encaixar no rol de compositores de "música eslava".

Como na "Rapsódia", a música de Rachmaninov é de difícil execução e de fácil recepção. Na década de 1940, Frank Sinatra usou o "Concerto para Piano nº 2" nas canções "I Think of You e "Full Moon and Empty Arms". No cinema, sua música foi trilha sonora do blockbuster "O Diabo Veste Prada", de 2006" e do suspense "Nosso Dia Chegará", do diretor Romain Gavras.

Na visão de Putin, seria conveniente, desse modo, ter a obra de Rachmaninov como trilha sonora política. Putin tenta transformar a doçura da música eslava em arma de seu nacionalismo pan-eslavo. Afinal, a música de Rachmaninov é um marshmallow com açúcar, diz Prazeres.

O jornalista viajou a convite da organização do festival.


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