RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - A questão da saúde mental estava no centro do primeiro filme dirigido por Helvécio Ratton. O curta "Em Nome da Razão", de 1979, foi rodado em um hospício da cidade de Barbacena, revelando as péssimas condições de higiene e a falta de dignidade na rotina dos internos.

Seu mais recente filme volta a falar de problemas psíquicos, mas desta vez em uma chave completamente distinta, no drama cômico "O Lodo", sobre as tensas relações entre um homem depressivo e seu analista.

O fato de Ratton ser também psicólogo de formação talvez explique o interesse e o retorno do cineasta a esse universo mental.

"A relação entre os dois filmes passa pela psicologia de alguma forma, sim, embora sejam situações muito diferentes. No caso do filme de Barbacena, eu falava de uma questão de saúde pública, que mesmo hoje ainda não encontrou uma solução no Brasil. Mas no caso de ?O Lodo?, o filme vem mais do meu interesse pela alma humana, pela psicologia do indivíduo", diz Ratton, em entrevista por videoconferência.

A história é uma adaptação de um conto de Murilo Rubião, mineiro como Ratton e expoente da literatura fantástica no Brasil. É o drama de um burocrata ?que no longa se chama Manfredo? de vida pouco emocionante, que começa a sentir sintomas depressivos e procura os serviços de um terapeuta.

Ele não gosta da primeira sessão e resolve nunca mais voltar ao consultório, mas o analista começa a procurá-lo insistentemente, repetindo que ele precisa fazer o tratamento até sua cura. Se na vida real muitos pacientes não dão paz a seus terapeutas, telefonando-lhes nas horas mais impróprias, ali ocorre justamente o oposto.

Com o tempo, começa a ser vertido dos mamilos de Manfredo um líquido espesso e asqueroso como lodo, que talvez seja uma manifestação física de todos os seus problemas mentais somatizados. Para se livrar disso, ele acabará tendo que ceder às investidas profissionais do analista cedo ou tarde.

"Esse conto tem elementos de suspense, terror e humor. Tem uma crítica à psicanálise, à arrogância dela, embora ela hoje já não tenha mais o poder que teve décadas atrás", diz Ratton. "Alguns analistas morreram de rir com o filme, enquanto outros se sentiram muito incomodados."

Ratton já conhecia a obra de Rubião, mas só recentemente descobriu o conto que resolveu adaptar ao cinema. "Sempre gostei dessas histórias absurdas do autor, uma sobrinha do Rubião me ofereceu para trabalhar com a obra dele, então comecei a estudá-la. Ali descobri ?O Lodo?, que apesar de curto, é cheio de camadas. E com uma visão do fantástico muito contemporânea", diz o cineasta.

O mineiro diz que a naturalidade com que o fantástico surge na vida dos personagens o fascinou, e que decidiu fazer uma obra entre dois registros: o absurdo e o realista. Para encontrar o tom exato nas atuações, chamou alguns membros Grupo Galpão, destacado na cena teatral de Belo Horizonte, e fez uma preparação intensa prévia às filmagens, até chegarem ao ponto certo. "Resolvi trabalhar só com atores de Minas. É um filme belo-horizontino ao extremo", diz.

De certo modo, o longa é mais um na obra de Ratton ?a exemplo de, sobretudo, seu "Pequenas Histórias", de 2007? a colocar Minas Gerais no mapa do cinema brasileiro. Por muito tempo, o diretor diz que se sentia solitário nessa empreitada, como um dos poucos cineastas nascidos em Minas a continuarem a falar do seu estado em sua obra.

Hoje ele fica animado que outros conterrâneos tenham importância no cinema nacional, como os diretores da Filmes de Plástico, produtora de Contagem responsável por obras premiadas, como "Temporada", de 2018, dirigido por André Novais Oliveira, e "Marte Um", de 2022, com direção de Gabriel Martins.

"Fico muito feliz com essa turma de Contagem. Acho que é uma novidade para o cinema mineiro e nacional, você tem gente da periferia falando de uma classe média baixa com muita propriedade. Vieram oxigenar o nosso cinema."

Ratton diz que fez questão de lançar "O Lodo" no cinema, em uma postura de defesa de que as salas escuras continuem a existir, mesmo sabendo que o streaming é um caminho sem volta. Ele diz que seu filme já estava pronto em 2020, mas que o lançamento foi atrapalhado por dois complicadores: a pandemia e a falta de incentivo ao audiovisual dos governos de Romeu Zema, em Minas Gerais, e de Jair Bolsonaro, na esfera nacional.

"[O audiovisual] Foi ignorado não apenas por essa turma da incultura, que Bolsonaro colocou lá [na Secretaria da Cultura, então parte do Ministério do Turismo], como também pelo setor econômico. Paulo Guedes não tinha a menor sensibilidade de entender a produção cultural como um fato econômico importante", diz. "O governo Bolsonaro foi como atravessar um deserto."

O LODO

Quando Estreia nesta quinta (13) nos cinemas

Classificação 14 anos

Elenco Eduardo Moreira, Renato Parara, Inês Peixoto

Produção Brasil, 2020

Direção Helvécio Ratton


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