SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O É Tudo Verdade de 2023 é marcado por retornos. O festival, que começa nesta quinta-feira em São Paulo e no Rio de Janeiro, destaca uma série de cineastas que fizeram a carreira no documentário.
Nos últimos anos, o gênero ganhou espaço. Edições recentes dos festivais de Veneza e Berlim deram o prêmio máximo a filmes do gênero. O Leão de Ouro foi para "All the Beauty and the Bloodshed", de Laura Poitras, e o Urso de Ouro consagrou "On the Adamant", de Nicolas Philibert.
No evento brasileiro, porém, voltam também os entrevistados. "Subject", longa que abre o festival na capital paulista, tem por tema o próprio documentário e entrevista participantes de filmes que marcaram esse filão.
No momento em que o formato está mais popular do que nunca, a produção discute a própria ética e a responsabilidade dos documentaristas.
As diretoras americanas Camilla Hall e Jennifer Tiexiera ousam em revisitar nomes polêmicos. Elas entrevistam gente como Michael Peterson, suspeito de matar a mulher e protagonista da minissérie "Morte na Escadaria", de 2004. Outro que dá as caras é Jesse Friedman, condenado por abuso de menores e personagem de "Na Captura dos Friedmans", de 2003.
Completam o elenco de filmes dentro do filme as pessoas mostradas em "Basquete Blues", de 1994, sobre jovens buscando carreira na NBA; "The Square", de 2013, sobre a Primavera Árabe no Egito em 2011; e "Os Irmãos Lobo", de 2015, sobre uma família confinada em um apartamento de Nova York por 14 anos. Nenhum dos cineastas responsáveis pelos documentários aparece em "Subject".
Segundo Camilla Hall, a seleção tem títulos que impactaram o meio e marcaram as vidas dela e de Jennifer Tiexiera. Também foi levado em conta a cena atual do documentário, do lado internacional ao "true crime".
"Queríamos misturar histórias de esperança e desafiadoras. O objetivo era encontrar o tipo certo de coquetel de filmes, que desse uma imagem completa da indústria", diz Hall.
"Subject" vai fundo na ética do negócio. A partir dos cinco documentários, o longa de 90 minutos discute os efeitos psicológicos de ter a vida explorada em um filme e o direito ou não dos documentados a uma porcentagem dos lucros.
Os momentos mais fortes mostram o que aconteceu com aquelas pessoas depois de registradas pela câmera. Fica evidente a distância entre eles e os filmes que se ergueram a partir de suas imagens.
Protagonista de "The Square", Ahmed Hassan não pôde sair do Egito para prestigiar a cerimônia do Oscar que indicou o documentário. Já Jesse Friedman até visitou o Festival Sundance que premiou "Na Captura dos Friedmans", mas o público o recebeu com ojeriza pelas acusações de abuso infantil --pessoas atravessavam a rua para não cruzar com ele.
Margaret Ratliff é quem protagoniza o clímax. Enteada de Michael Peterson, ela relata seu contato com a "A Escada", minissérie da HBO que refaz com atores os eventos de "Morte na Escadaria". No filme, Ratliff diz que o diretor perguntou por email se ela poderia conversar com a atriz Sophie Turner, que a interpreta no seriado. Ou seja, queriam explorar mais uma vez sua imagem na TV.
O mais interessante é que Ratliff demorou a topar participar de "Subject", mesmo estando no projeto desde o início. Ela foi chamada só para ajudar na produção, logo antes dos novos episódios de "Morte na Escadaria" estrearem. Aos poucos, percebeu que a família seria importante.
"Eu no começo preferia ficar atrás da câmera, ajudando a trazer participantes e servindo de consultora. Conforme o processo avançava, percebi que minha família passava pelos mesmos problemas éticos dos outros entrevistados."
Hall diz que a produção também contatou os documentaristas das produções escolhidas, garantindo que ninguém se sentisse atacado por ter o filme debulhado e permitindo a maior troca de ideias.
Steve James foi um dos chamados. Diretor de "Basquete Blues", título mais antigo da seleção de "Subject", ele confirma o contato de Hall e Tiexiera e se diz feliz que Arthur Agee, protagonista do documentário, tenha sido incluído. Para James, o filme evidencia o trabalho responsável que ele e a equipe tiveram em 1994.
"Acho que estávamos à frente de nosso tempo quando fizemos 'Basquete Blues', em como lidamos com os entrevistados. Nós demos mais agência a eles que qualquer um na época, especialmente quando o filme fez dinheiro. Era a coisa certa, mesmo que não fosse habitual", afirma.
James vê outras mudanças no meio. No É Tudo Verdade deste ano com "Um Espião Compassivo", sobre o físico mais jovem do Projeto Manhattan, o diretor lembra que era raro um documentário estrear nos cinemas na década de 1990.
"A visão do público sobre o documentário era baseada na ideia de serem que nem vegetais, algo educacional", diz Steve James.
"Eles agora são força significativa no entretenimento, mas continuam uma fonte de educação e reflexão."
Davis Guggenheim vê um processo parecido na forma. Diretor de "Uma Verdade Inconveniente", de 2006, o americano diz que o documentário evoluiu na criação. Ele lembra como exemplo o uso não convencional de imagens de arquivo em "Still", filme sobre o ator Michael J. Fox que ele exibe agora no festival brasileiro.
"Meu pai [o documentarista Charles Guggenheim] dizia que não se podia fazer algumas coisas no gênero porque havia regras. Muitos desses princípios foram jogados pela janela."
O nível de acesso também mudou, graças ao streaming. Segundo Guggenheim, as plataformas permitem ao público que veja documentários em casa em vez de no museu, e mais cineastas são descobertos.
É o caso de Evgeny Afineevsky. O cineasta israelita-americano foi indicado ao Oscar em 2016 por "Winter on Fire", filme sobre os protestos na Ucrânia em 2013. Segundo ele, a distribuição pela Netflix foi crucial para estabelecer seu nome e levar o longa a mais países.
Mas hoje ele vê limitações. O diretor exibe no É Tudo Verdade o filme "Liberdade em Chamas", uma continuação de "Winter on Fire" dedicada à Guerra da Ucrânia, e o projeto continua sem distribuição. Afineevsky diz que, como seu longa, outros documentários sobre o conflito passam pelas mesmas dificuldades.
Segundo Camilla Hall, a popularização do streaming deu poder aos algoritmos das plataformas, que alimentam o público com mais do que já consomem.
"Algumas pessoas assistiram ao nosso filme e disseram para a gente que nunca mais iriam ver um documentário da mesma forma. É isso que esperamos. Torcemos para que as pessoas tenham mais consciência quando forem escolher o que ver", diz Hall.
A discussão inclui o "true crime", os documentários que investigam a fundo casos complexos de assassinato como entretenimento.
Margaret Ratliff, tornada personagem em "Morte na Escadaria" há duas décadas, viu de perto o crescimento da popularidade do formato. Ela diz que os serviços de streaming entenderam a avidez do público e o alimentaram sem restrições. Segundo ela, a exploração é um retrocesso, mesmo com bons exemplos.
Eliza Capai, que dirigiu a minissérie "Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime", da Netflix, vê nas questões do "true crime" parte do debate sobre a regulamentação do streaming --em especial no Brasil, onde a entrada das plataformas coincidiu com o fim de políticas públicas de financiamento.
Margaret Ratliff em cena do filme 'Subject', de Jennifer Tiexiera e Camilla Hall Divulgação Cena do filme 'Subject', de Jennifer Tiexiera e Camilla Hall **** Mas ela diz que há vantagens para os documentaristas num cenário de equilíbrio entre projetos independentes e comerciais. Ela dá como exemplo o seu "Incompatível com a Vida", filme sobre perda gestacional que estreia no É Tudo Verdade. Capai diz que o longa se beneficiou dos aprendizados na minissérie.
"A produção era de outro tamanho. Havia entrevistas com 18 pessoas no set e trabalhei com um diretor de arte. Isso permite um salto técnico", afirma.
"Depois daquilo, consegui pensar em mais questões para o 'Incompatível com a Vida', mesmo sem orçamento. A realidade era outra."
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