(FOLHAPRESS) - Pouco falamos sobre literatura moçambicana. Quando esse assunto entra na roda, os comentários costumam se restringir a dois autores, Paulina Chiziane, vencedora do prêmio Camões em 2021, e Mia Couto, presença constante em festivais brasileiros.
É evidente que as obras de ambos merecem ser lidas e estudadas, mas está na hora de levar para a cabeceira outros nomes expressivos desse país do sudeste da África, colonizado por Portugal assim como o Brasil.
Um bom segundo passo é conhecer João Paulo Borges Coelho, com obras já lançadas por aqui, como "As Visitas do Dr. Valdez", de 2004, e "Crônica da Rua 513.2", de 2006. Seu romance mais recente publicado no país é "Museu da Revolução", que obteve o segundo lugar no Oceanos, prêmio que abarca toda a literatura de língua portuguesa.
O autor nos apresenta a personagens de diferentes gerações e países que, por razões distintas, se unem em uma viagem pelo interior de Moçambique. A van é conduzida por Bandas Matsolo, morador de Maputo e ex-combatente das lutas pela independência do país. Ao lado dele está Jei Jei, um jovem mecânico também da capital e muito interessado pela história moçambicana.
Eles levam os portugueses Artur Candal, homem idoso perseguido pelas lembranças das batalhas no país africano, das quais participou como parte das forças colonizadoras, e Leonor Basto, filha de um grande amigo de Candal. Outra passageira é a sul-africana Elize Fouche.
Não são poucos os mistérios que todos eles carregam na bagagem. Longas viagens como sagas de autoconhecimento são uma tradição da literatura e do cinema, e Borges Coelho segue essa vertente, mas não se restringe a ela.
O livro alterna o foco de um personagem para outro até percebermos que a figura central é, de fato, Moçambique. Os mais velhos, especialmente Candal, vivem reféns de um país que conheceram e não existe mais. As andanças por regiões como Tete exibem apenas sinais das paisagens urbanas e rurais daquela Moçambique sob erupção das décadas de 1960 e 1970.
Por outro lado, as experiências afetivas sobrevivem pulsantes, quase intactas, na memória desses ex-soldados.
Os mais jovens, porém, estão em busca de um território sobre o qual sabem pouco. Não se frustram tanto quanto os mais velhos porque alimentam menos ilusões e ainda não caíram na armadilha da nostalgia.
Professor de história da universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, o autor engendra um caminho em que o passado resiste colado ao presente. "Museu da Revolução" não teria tamanho impacto sem o conhecimento minucioso dele a respeito das disputas que constituíram o país.
A ficção, porém, não se sustentaria apenas com o arcabouço histórico, por melhor que seja.
Como criador, Borges Coelho parece se inspirar nas esculturas da arte maconde de estilo ujamaa, comuns no nordeste do país: figuras humanas de feições enigmáticas que se prendem às outras; a madeira, o chamado pau-preto, retorcida em movimentos inusitados; um equilíbrio aparentemente frágil entre os elementos.
Os destinos dos personagens se tocam onde jamais se espera. São arranjos tão imprevisíveis quanto as pontes construídas pelo autor entre a atualidade e meio século atrás. Tantos cruzamentos poderiam desorientar os leitores, mas a prosa límpida, sem alegorias, mantém o prumo das histórias.
Uma epígrafe abre o capítulo final do livro: "As pedras não falam, o passado não diz nada. Limita-se a fazer eco de todas as indagações e a devolver-nos, olhos nos olhos, as nossas perguntas".
Curiosa essa reflexão em uma obra no qual o passado tem tanto a dizer. Por outro lado, é preciso reconhecer que as épocas vividas nunca elucidam por completo o tempo presente de uma pessoa ou de um país.
"Museu da Revolução" talvez seja um admirável romance sobre uma contradição: o passar do tempo contribui para a compreensão da realidade de Moçambique e, ao mesmo tempo, nos impede de ver o país em sua complexidade.
MUSEU DA REVOLUÇÃO
Avaliação Muito bom
Preço R$ 56,90 (356 págs.); R$ 47,90 (ebook)
Autor João Paulo Borges Coelho
Editora Kapulana
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