SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um corpo interage com pequenos pedaços de espelho enquanto é fotografado. As imagens revelam -e escondem- recortes de uma figura não linear, como se o os objetos refletores, somados ao poder de captura da lente, trabalhassem em conjunto a sua abstração.

"Glass Pieces, Life Slices", exibida na Bienal de Paris de 1975, é uma sequência fotográfica em que a artista Iole de Freitas, declarada admiradora do construtivismo de Vladimir Tatlin, usa seu próprio corpo para estudar a interação com outros objetos -em especial, os refletores, que desafiam as noções de espaço.

Essa é uma das obras na exposição agora no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, que reúne 16 sequências fotográficas, nove filmes e três instalações da artista de 78 anos. A maioria é inédita para o público brasileiro, e com muitas produções de Milão, da década de 1970.

O clima na época era de efervescência política e cultural. O movimento operário agitava as ruas italianas enquanto artistas testavam técnicas marcadas pelo uso de materiais não convencionais, vide o movimento da arte povera e a chamada body art, uma das vertentes da época mais viva das performances.

O processo de criação de tonalidades de cor usando a incidência de luz sobre a película de diferentes filmes aparece como centro das primeiras obras da artista. Em "Jump to the Other Side and Win a Red Kimono", de 1972, vemos parte do busto de Freitas fotografado no reflexo de uma janela. A luz do momento do clique, somada ao uso do filme Kodachrome, possibilitou a vivacidade do tom da roupa observada no vidro.

Freitas era dançarina e tinha estudado desenho industrial no Rio de Janeiro, formação que a levou a trabalhar na Olivetti, famosa pelas máquinas de escrever, ao chegar a Milão. Foi num apartamento em que morava na rua San Marco, em frente à sede do jornal Corriere della Sera, onde fez suas primeiras intervenções artísticas.

Também em Milão, aos 25 anos, ela fez suas primeiras criações usando alguns objetos simples, seu corpo, uma câmera fotográfica e uma Super-8 em cliques marcados pela experimentação da luz. "Hoje em dia é tudo no celular, com filtro. É interessante pensar na materialidade que existe na película dos filmes. Ela mesma é matéria, que absorve luz e cor", diz a artista.

Nas fotografias ampliadas pela primeira vez em grande escala, o eixo não é o corpo da artista, mas a relação que este compõe com outros elementos. Ou, ainda, a forma que ele consegue tomar dependendo de seu posicionamento diante da câmera -reflexões sobre tempo e espaço que Freitas afirma ter aprendido com a dança. "O espaço é responsivo ao corpo quando este elabora gestos não subordinados ou utilitários", afirma a crítica de arte Sônia Salzstein.

Para estudar a capacidade de reflexão das superfícies, Freitas usou folhas metálicas, vidro e uma faca -o que gerou "Introvert/Penetrate; Extrovert/Penetrate; Fear/Do Not Penetrate", de 50 anos atrás. A artista também usaria o objeto cortante para explorar o penetrar de uma matéria em outra, quando filma o ato de perfurar um grande pedaço de tecido flutuante. Mais tarde, a instalação foi exposta em 1977, na galeria Marconi, em Milão -e agora é remontada no Instituto Moreira Salles.

O objetivo era pensar no significado da nossa convivência, enquanto corpo, com outras coisas. "Cada coisa provoca um significado diferente. Mas eu acabei perdendo a faca", diz a artista, lembrando que o objeto tinha a inscrição "Lembrança de Campina-Grande". Uma idêntica foi encontrada pelo IMS num leilão e também está na mostra.

A ação de penetrar também questiona os limites entre o interior e exterior das próprias obras. Suas adaptações para o espaço do instituto foram calculadas, visto que a própria projeção das imagens e filmes é parte importante de seu trabalho.

"Elements", de 1972, que investiga a materialidade da água, do corpo e do mercúrio, aparece em uma parede diagonal, enquanto "Light Work", do mesmo ano, explora a reflexão da luz e é projetado em uma placa de policarbonato disposta no chão. Nesse caso, a translucidez busca provocar os limites espaciais do fazer artístico.

Revisitar as primeiras produções de sua carreira não foi simples. O material precisou ser reorganizado depois de 50 anos e, como lembra Freitas, a maioria dos artistas da época já morreram. "Todos estávamos buscando a liberdade expressiva através das mídias fotográficas", afirma, comentando sua convivência com Meredith Monk, Marina Abramovic e Yvonne Rainer em sua passagem por Nova York, momento em que criou o curta "Exit", de 1973.

"A ideia de coletivo era muito forte. Compartilhávamos da mesma sintonia sensível e intelectual, e a presença feminina era ostensiva", diz. As mulheres ganhavam mais espaço não só na criação, mas também na área curatorial e editorial -com nomes como o de Barbara Radice e Anne Marie Boetti, amiga de Freitas. "Eu falava 'não vêm hoje em casa, que estou trabalhando'. E ela dizia 'é agora que eu vou mesmo!'."

"Existia a intenção de colocar em xeque as imagens de feminilidade e seus códigos, reproduzidos especialmente pela indústria cinematográfica hollywoodiana e pela indústria publicitária", afirma Salzstein, a crítica.

Em "Spectro", de 1972, fotografias capturam as sombras de um corpo retorcido na parede. "Em sua autorrepresentação, Freitas descobre um corpo estranho e inquietante, ligado à multiplicidade de fragmentos e superfícies reflexivas", ela acrescenta.

"Eu queria criar um cotidiano sensível de observação do mundo onde estamos incluídos", diz Freitas. "Que relação temos com a luz? Com a janela? Com a água, o corpo, e outros objetos?", pergunta a artista, que segue curiosa sobre a ocupação do espaço pela matéria.

A última fotografia exposta, tirada já no Rio de Janeiro, em 1981, mostra os dentes de uma serra fincados em um pedaço de tecido -e representa o início da passagem para as esculturas espaciais, trabalho que Iole de Freitas ainda produz.


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