SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em meio a mordidas de zumbi, tiros trocados entre sobreviventes e abusos cometidos por radicais, "The Last of Us" encontrou espaço, entre seus nove episódios, para dedicar dois deles a histórias de amor e de descoberta queer.
Ainda na TV, "Chucky" não precisou atenuar a monstruosidade de seu brinquedo assassino para pô-lo numa cruzada sangrenta contra a homofobia. No cinema, "Batem à Porta" fez seus dois pais protagonistas protegerem a filha de lunáticos como qualquer casal heterossexual faria.
Historicamente, o terror sempre gerou identificação com o público LGBTQIA+, da orgia sáfica do "Drácula de Bram Stoker" à metáfora para os sonhos homoeróticos de "A Hora do Pesadelo 2". Agora, porém, esses e outros filmes e séries de gênero -aqueles concebidos para se encaixar num gênero específico, para além da bipolarização entre drama e comédia-, estão encarando a temática de frente, fora das alegorias.
Passado o boom das histórias queer de romance e coming of age, em que os protagonistas ou sofrem por amor ou exploram sua sexualidade enquanto amadurecem, personagens LGBTQIA+ começaram a pipocar também em tramas de terror, suspense, fantasia, ficção científica, faroeste, ação, musical e animação.
Sua orientação sexual ou identidade de gênero, nesses casos, não costuma estar no cerne do roteiro, mas tampouco é tratada com superficialidade, trazendo representatividade sem ativamente levantar bandeiras. É o caso de "The Last of Us", que tem uma protagonista lésbica que se envolve com outra menina, sem que isso desvie sua atenção dos zumbis à volta.
"Ela é simplesmente uma pessoa gay que existe no apocalipse", resumiu Bella Ramsey, sua intérprete, quando passou pelo Brasil para a CCXP, em dezembro. Na mesma série, Murray Bartlett e Nick Offerman são outros personagens que vivem sua homossexualidade em paralelo à luta por sobrevivência, se descolando de estereótipos ao pegar em armas e proteger um ao outro com certa truculência.
Para Duda Leite, curador e jornalista que prepara um curso sobre a temática queer nos filmes de terror para o Museu da Imagem e do Som, o gênero historicamente usou simbologia para associar a monstruosidade de seus vilões a traços e comportamentos ligados aos LGBTQIA+.
A grande mudança de agora, no caso específico do terror, é que esses personagens saíram do armário e não estão mais associados à vilania. Na série "Chucky", que deve ganhar uma terceira temporada ainda este ano, o brinquedo assassino mata aqueles que fazem bullying com um adolescente gay, que é vítima, não monstro da história.
Também nela, os filhos de Chucky e Tiffany são não binários e servem de compasso moral para as malvadezas de seus genitores. A tendência se repete em outro slasher recente, "They/Them", sobre um acampamento que promete a chamada "cura gay" e deixa claro que a maldade está em seus administradores, não nos adolescentes que ali chegam.
Já em "Faca no Coração", os gays de uma produtora pornô dos anos 1970 são penetrados pela faca que um assassino mascarado esconde nas entranhas de um pênis de borracha, mas levam a melhor no final, refutando a narrativa de condenação do pecado que já reinou nas entrelinhas.
À frente dessa onda junto com Bartlett, de "The Last of Us", está Jonathan Groff, que foi seu colega de elenco na precursora "Looking", série da HBO que retratou o cotidiano de um grupo de amigos gays em São Francisco.
Mas se esta navegava pelo lugar-comum das relações amorosas e sexuais, numa trama identitária, o último projeto do americano, "Batem à Porta", pouco se interessa pela relação homoafetiva dos protagonistas. Dirigido por M. Night Shyamalan, o suspense mostra um casal que vai passar as férias com a filha numa cabana, invadida por uma espécie de seita do fim do mundo que ameaça a família.
"É um sinal dos tempos. Estamos falando de um diretor icônico, num filme comercial", disse Groff à Folha de S.Paulo durante o lançamento. "O filme poderia ser sobre qualquer família que se ama, e, por acaso, ela é composta por dois pais e uma filha adotada. É progressista no sentido de não apagar a narrativa queer, sem fazer alarde em cima disso", complementou seu par romântico em cena, Ben Aldridge.
Não é só no terror que a tomada dos filmes e séries de gênero por LGBTQIA+ acontece. Vencedor do Oscar deste ano, "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" faz questão de frisar que a homossexualidade de uma personagem é um dos fatores que desgastam sua relação com a mãe, força-motriz da história.
O longa, no entanto, não se resume a aceitação, sendo uma ficção científica de ritmo acelerado que se debruça sobre o conceito de realidades paralelas -sob um verniz camp, visual exagerado e afetado do qual a comunidade LGBTQIA+ se apropriou, vale dizer.
Ainda na ficção científica, "Eternos" deu à Marvel seu primeiro super-herói abertamente gay, que beijava o marido em cena, e "Mundo Estranho", da mesma Disney, tinha entre os personagens um adolescente com um crush num outro menino, sem que isso fosse uma questão para ele ou sua família.
"Não! Não Olhe", de Jordan Peele, por sua vez, deixou claro que a personagem de Keke Palmer era lésbica sem se intrometer em sua busca por vida alienígena num rancho. Diante de uma paisagem igualmente árida, os faroestes "Ataque dos Cães" e o ainda inédito "Strange Way of Life", curta de Pedro Almodóvar, levaram sensibilidade ao western, pondo os tipos machões que habitam o gênero para beijarem e transarem com outros homens.
No policial "Glass Onion: Um Mistério Knives Out", o galanteador detetive vivido por Daniel Craig também deixa claro que beija rapazes. E a temática se repete nos filmes de guerra, com "Segredos de Guerra", nas animações, com "Velma", "Flee: Nenhum Lugar Para Chamar de Lar" e até o recente "Homem-Aranha: Através do Aranhaverso", na ação de "Atômica" e "The Old Guard" e até nos filmes natalinos, com "Alguém Avisa?" e "Um Crush para o Natal".
"O objetivo final é termos cinema queer em todos os tipos de filme e com todos os tipos de personagem. Nós podemos ter histórias sobre sexualidade, homofobia, aceitação, mas também podemos ter histórias em que essas questões nunca são mencionadas", diz Amanda Kramer, do musical sexy e envolto em couro "Please Baby Please", e que ainda faz a ressalva de que o interesse nem sempre é sincero, mas movido a "pink money", o lucro advindo do público LGBTQIA+.
"Mas é importante que tenhamos histórias em que este não seja mais o tópico central, em que os LGBTQIA+ sejam personagens como quaisquer outros, de padeiros a assassinos em série. Representatividade de verdade é isso, chegarmos num ponto em que estamos simplesmente vendo um filme, não um filme gay. Ainda não chegamos lá, mas caminhamos para isso."
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