Cinco faixas compõem o novo EP do Trio punk Hardcore Traste. “Colisão” foi lançado oficialmente nas plataformas de streaming no último dia 10 e, no dia seguinte, o clipe da música “Divã”, quarta composição do trabalho, foi disponibilizado no Youtube. O trabalho foi gravado de forma analógica no estúdio ForestLab. O público da banda, que acompanhou as últimas apresentações já teve contato com as novas letras, que encaram uma atmosfera introspectiva, que reflete as pressões mentais às quais todos estivemos expostos. Em especial, em função do período de isolamento social provocado pela pandemia.
“Colisão” é uma obra composta durante e no pós-pandemia.

Período em que os integrantes da banda, assim como toda a população foram afetados pelas recomendações de distanciamento. Na impossibilidade do encontro com o calor e a troca dos palcos, a busca por espaços de respiro e expressão se voltaram para dentro. No entanto, com álbum lançado, a vontade do trio é voltar para a estrada. “Ao vivo é a melhor forma de mostrar as músicas para valer. Deu muito trabalho e depois que lançamos queremos leva-las por aí. Queremos divulgar e tocar fora, é hora de dar uma volta”, planeja Guilherme Melich, ou Guina, responsável pelos vocais, guitarras, melodias, letras da banda e assina também a direção e roteiro do clipe.

Ele comenta que o trabalho foi uma maneira de lidar com as mazelas desse tempo. Tanto de uma maneira coletiva maior, como também em uma caminhada individual. “É uma forma de reagir e ressignificar as coisas. Se fica só em plano mental, de sofrimento, podemos levar para trabalhar na terapia, ou podemos inventar algo novo a partir desse sofrimento. Existem muitas maneiras de botar isso para fora”.


Ele conta que foram poucos os encontros entre os companheiros de banda, durante o período de emergência em saúde. Refletir esse momento, tornou o quarto EP do trio, seguindo Guina, mais coerente. “Acho que a arte é uma terapia selvagem, uma maneira mais visceral de abordar as suas questões”. O primeiro single: “Colapso Nervoso”, por exemplo, trabalha a reação ao perceber os primeiros sintomas de uma crise de pânico e a pessoa ainda não consegue entender e nem controlar o que ocorre com o próprio corpo. “Dizemos na letra: ’eu já tô tremendo todo e não sei’. Essa fase inicial, quando começa a passar mal, antes de desvendar a origem, deixa a gente perdido. Essa sensação de estar à deriva é algo muito presente no EP”, ressalta o guitarrista.


Com o trabalho disponível, a vontade do trio é levar todas essas reflexões para os palcos dentro e fora de Juiz de Fora. Guina conta que embora as composições tenham ocorrido em diferentes momentos, quando o trabalho foi reunido, havia um fio condutor que as uniu. “É quase como se elas se emendassem. Contextos diferentes, mas com pontos de conexão, ou colisão, que é totalmente acidental, mas tem sentido no impacto não planejado e, na maneira como se colam.” Tanto, que, conforme ele, quando Lisciel Franco terminou de gravar as faixas e exportou o material, a ordem era diferente do planejamento inicial. O som, porém, funcionou tão bem naquela ordem, que ela foi mantida e se tornou a maneira oficial como as músicas chegarão nos ouvidos do público.


As três primeiras músicas do EP têm entre seus versos o verbo “vem” o que, para o compositor, em um primeiro momento, chegou a causar incômodo. A repetição do termo, porém, era uma impressão. “A palavra entra em contextos diferentes e esse é um ponto de conexão, ou colisão, também, o que acaba tornando tudo mais coeso. Quando eu estava sozinho no mato, em conversas comigo mesmo, as ideias circulavam em lupin, se repetiam. Como ocorre no refrão de Divã, é quase um mantra. É muito diferente quando conversamos com outras pessoas, quando as ideias se ampliam”, reflete Guina.


A relação com o aspecto material da arte está sempre presente nos lançamentos da banda. Encartes, vinil já fizeram parte dos EPs anteriores, que se tornaram um álbum 3 em 1. No novo trabalho a equipe elabora um Zine, que traz informações sobre o EP e os links para acessar as plataformas. A banda não descarta a possibilidade de expandir essa produção e lançar um álbum completo. “Está no horizonte”, projeta Guina.


Traste no Divã


Em busca de momentos de descompressão ao ar livre, durante o período de isolamento social, Guina saia para pedalar por trilhas que estão ligadas ao Morro do Cristo. O caminho habitual também leva às antigas instalações da Clínica São Domingos, hospital psiquiátrico que foi desativado em 2013, que permanecem abandonadas.


O espaço se tornou cenário para a gravação do clipe da música Divã, onde personagens com gestual e imagem inspirados em obras de arte ganham vida e angústia na pele do guitarrista, do baterista Fil e do baixista Polato.


Divã nasceu de conversas com um amigo, que passava por grandes oscilações de humos. “Sempre que ele estava em uma fase muito boa, demonstrava uma excitação enorme, ele se sentia o melhor do mundo. Começava as frases com ‘modéstia à parte...’ e considerava tudo o que fazia ótimo. Porém, quando ele entrava em fases mais depressivas, nada do que ele fazia tinha valor. Daí o verso: ‘eu sou o melhor em ser o pior em tudo’”.

Esse transtorno foi trabalhado nas três personagens do clipe, que misturam angústia e fúria em seus gestos. As poses e cores do pintor expressionista Egon Schiele emprestam inspiração para o personagem encarnado por Guilherme, que cria em cadernos e, quando insatisfeito, arranca as páginas do caderno e se desfaz de tudo. Os movimentos das mãos das figuras pintadas por Schiele guiam também a construção do gestual da atuação dos integrantes da banda.

Polato vive as angústias de ter que superar a simesmo em um jogo de xadrez, cuja inspiração é o quadro “Os jogadores de xadrez” do pós- impressionista Pául Cézanne, lutando com as expectativas, o tédio e as ansiedades. Fil carrega em sua personagem uma inquietação que se traduz em cigarros fumados compulsivamente, na necessidade de manter o corpo em movimento constantemente, que em algum momento provoca uma explosão.


Guina reflete que hoje, caso a luta antimanicomial não tivesse alterado a forma de tratar pessoas em sofrimento ou com algum transtorno mental, possivelmente, personagens que apresentassem os comportamentos explorados no clipe, estariam fechados em manicômios.


“Uma coisa que conversamos com toda a equipe, da qual eu fiz absoluta questão era de, em momento nenhum do vídeo passar um ar cômico. Exatamente por ser um tema delicado, que aborda o sofrimento mental. Somos brincalhões, podemos ter esses momentos, mas o material precisava ser muito sério e respeitoso”, conta Guina, que trabalhou dois anos com pacientes de Saúde Mental no Centro de Convivência.


“É um espaço que reúne pessoas que estão em tratamento, mas apresentam algum grau de autonomia. É importante pensar em espaços como esses. A luta antimanicomial gerou o fechamento desses espaços em que as pessoas era isoladas do convívio social e ficavam trancadas. Hoje sabemos que a melhor maneira de reabilitar e reintegrar as pessoas é por meio de abordagens terapêuticas e artísticas usadas de forma harmônica e não excludente. Por isso, gravar esse clipe no São Domingos foi tão importante”, detalha Guina.

“As imagens brutas puras já continham esse clima. Na edição, com o movimento distorcido da imagem, o João Pedro Aguilar foi muito feliz na forma de tratar. Fica esse sentimento de psicológico afetado”.
Embora nunca tenha passado por processos de psicanálise, Guina explica que expor o trabalho dessa maneira, carregado de elementos internos é como colocar a Traste no divã. “De certa forma, nós nos expomos e revelamos um pouco de nós também.”

 

Leandro Freitas, diretor de fotografia do clipe - Imagens foram captadas na estrutura da Clínica São Domingos, hospital psiquiátrico desativado em Juiz de Fora

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