SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O frequentador habitual da Mostra Internacional de São Paulo se acostumou a ver sessões especiais de filmes restaurados, muitas vezes tendo dificuldades de voltar ao cinema contemporâneo, pela quantidade de filmes medíocres que costumam ser encaixados entre as pérolas.
Nesta 47ª edição, o número de restaurados é um pouco mais animador que nos anos anteriores, com Manoel de Oliveira e Jacques Rivette como os destaques. Se juntarmos a eles a retrospectiva Michelangelo Antonioni, teremos muito a ver ou rever até o fim da mostra.
Os filmes de Rivette e Oliveira são os melhores entre os restaurados. E os de maior duração. No belo último longa de Scorsese, "Assassinos da Lua das Flores", temos quase três horas e meia, mas com uma grande preocupação em não entediar a plateia. Rivette e Oliveira, pelo contrário, desafiam o público, cada um a sua maneira.
"Amor Louco", de Rivette, tem pouco mais de quatro horas. É de 1969, época em que o cinema moderno começava a ser esgarçado ?e testado? em filmes radicais. Rivette pensa o encontro entre teatro e cinema de uma maneira livre, preparando o terreno para os longas que faria a seguir, notadamente "Não Me Toque", de 1971.
Na trama, um diretor e uma atriz de teatro, vividos por Jean-Pierre Kalfon e Bulle Ogier, atravessam uma crise matrimonial, em meio aos ensaios para uma peça. Em um momento de tensão e melancolia, ela resolve abandonar os ensaios e se torna reclusa.
"Todo grande filme sobre teatro é de fato sobre a linguagem", escreveu Hélène Frappat em seu belo livro sobre o diretor. Claire, personagem de Ogier, renuncia ao teatro, e então renuncia à linguagem. Encolhe-se em seu apartamento em busca de salvação para seu casamento.
No fundo, "Amor Louco" é sobre a criação de uma obra de arte, e como os obstáculos para essa criação atingem as relações humanas. Não estamos tão distantes da obra-prima "A Bela Intrigante", que Rivette realizaria em 1991. Não "as regras da arte", mas os mistérios da arte e dos relacionamentos.
Diferente é o caso de "Vale Abraão", de 1993. Desde sua estreia, a aura de obra-prima do cinema português pairou sobre este filme que Manoel de Oliveira realizou aos 84 anos. É o mais clássico de sua filmografia, embora tenha diversos momentos modernos e não facilite muito para o espectador.
O texto é magnífico. Tanto que não seria nada injusto dar um crédito de codireção à autora do livro no qual se baseia, Agustina Bessa-Luís. Nunca antes no cinema de Oliveira as imagens estiveram tão definidas, diria até provocadas pelo texto.
"Vale Abraão" é ainda o mais claro entre todos os filmes de Oliveira. Nos dois sentidos, o de clareza e o de claridade. Pode-se mesmo dizer que é um filme solar, a despeito dos outonos e invernos da alma que Agustina escreveu e Manoel registrou tão bem.
Como em "Amor de Perdição", longa de 1979 responsável pela ascensão definitiva de Oliveira no cinema internacional, em "Vale Abraão" também há um "delator", embora não assim nomeado. É a maneira como Oliveira respeita o livro de Agustina, a versão lusitana de Emma Bovary que a escritora tão bem criou.
Mas nem só de obras-primas se faz uma mostra. Muitas vezes somos surpreendidos por revisões reveladoras ou descobertas. Um desses filmes a ser (re) descoberto é "O Sangue", de 1989, a estreia de Pedro Costa em longas. O diretor iniciava então sua trajetória marcada no claro-escuro e na simpatia pelos excluídos ou incompreendidos.
A referência maior parece vir de "Boy Meets Girl", de 1983, de Leos Carax, e de "O Mensageiro do Diabo", de Charles Laughton. Ambos, aliás, são primeiros longas de seus diretores. No caso de Laughton, é também o último. Nos longas seguintes, o estilo de Costa é depurado e ele se torna um dos grandes cineastas do presente século.
Há ainda o cinema de Man Ray, em "O Retorno à Razão", um apanhado de quatro curtas que realizou nos anos 1920, musicados recentemente pelo duo Sqürl, formado por Jim Jarmusch e Carter Logan. A vanguarda dos anos 1920 encontra um representante do cinema americano dos últimos 40 anos acompanhado do compositor de seus filmes recentes.
Man Ray foi importante na ideia de um cinema dadaísta, partindo depois para o surrealismo. O melhor desses curtas é "A Estrela do Mar", de 1928, justamente a transição de uma escola para a outra.
Talvez "Underground ? Mentiras da Guerra", de 1995, nos tempos bélicos que correm, revele-se um filme muito mais leve do que pareceu na época. É um dos grandes momentos da carreira de Emir Kusturica, que em seguida começou a ter um percurso bem irregular.
Nos anos 1990, Kusturica defendia uma identidade iugoslava, justamente quando o país começava a ser repartido. E inventou uma espécie de subterrâneo que atravessava uma Europa imaginária. Não à toa, o filme era acompanhado do adjetivo "felliniano".
Por fim, dois longas brasileiros realizados a partir da chamada Retomada nos mostram em que pé estão quando revistos hoje. Um deles é "Corisco e Dadá", de Rosemberg Cariry. Em 1996, quando estreou, foi considerado uma prova de que o cinema brasileiro podia perseguir o caminho da narrativa ampla, com maior comunicabilidade com seu público.
"Carandiru", 2003, de Hector Babenco, é uma prova maior ainda, pois se tornou um grande sucesso. O best-seller de Drauzio Varella já indicava tamanho desempenho, mas é evidente a boa mão de Babenco para esse painel crítico do sistema carcerário brasileiro e de uma de suas maiores tragédias.
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