SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Folhas de repolho voam ferozmente e mancham de verde a cabeleira branca de Maria Antonieta. Mas a humilhação não é nada para uma personagem que, com poucos segundos em cena em "Napoleão", tem aqueles mesmos fios encharcados pelo sangue do toque frio da guilhotina.
O novo filme de Ridley Scott, que chega aos cinemas nesta semana antes de desembarcar no Apple TV+, tem um início um tanto traiçoeiro. Sua introdução nos leva a crer que a história será marcada pela violência revolucionária e a brutalidade da guerra, embora o cineasta tome outro rumo.
São as violências e a brutalidade do amor que imperam em seu conto sobre Napoleão Bonaparte, mais interessado no casamento conturbado com a imperatriz Josephine.
Tanto que a trama se distancia das imagens magnânimas de um homem destemido e inabalável, tão frequentes na arte do período e que o próprio reforçou por meio de campanhas militares e construções faraônicas. Em "Napoleão", vemos um protagonista patético, quase digno de pena, que lambe os pés de uma Josephine adúltera.
Não que o Napoleão vivido por Joaquin Phoenix seja uma vítima. Longe disso. Ele é constantemente traído, perdoa e sofre calado, mas destrata e até bate na mulher. Ele a pressiona a ter filhos, adotando o comportamento padrão de séculos atrás que crucificava mulheres que tardavam a engravidar. Fora de casa, é um sádico ególatra.
"Ele era uma pessoa imatura, principalmente em relacionamentos. Havia algo de infantil no casamento dele. E ele era muito esquisito em situações sociais, diferentemente da Josephine, que ficava muito confortável em público. É absurdo, quase cômico", diz Phoenix, por telefone.
Seu Napoleão é mais um em O filho da pátria Ridley Scott lança sua visão épica para a história de Napoleão Bonaparte, que na pele de Joaquin Phoenix é um bobalhão a sua lista de personagens excêntricos. Neste ano mesmo, esteve no estranhíssimo "Beau Tem Medo", e por seu Coringa tresloucado ganhou o Oscar há três anos. Também sob a batuta de Scott, viveu outro imperador embriagado de poder em "Gladiador", de 2000.
Numa mescla interessante de épico de guerra e romance de época, "Napoleão" começa com o militar sendo alçado a líder de uma nação recém-livrada do reinado do terror encampado por Robespierre e seus revolucionários.
Vitorioso e carismático, ele parece uma saída para a então desequilibrada França, apesar de ter nascido na ilha de Córsega. Logo se declara imperador --com direito à clássica passagem em que tira a coroa das mãos do papa e a coloca sobre a própria cabeça, coroando também a amada Josephine, vivida por Vanessa Kirby, de "The Crown".
Nem por isso deixa de ser um paspalhão. Na famosa campanha do Egito, brinca com uma múmia como uma criança que acaba de ganhar um brinquedo, e a escrita de suas cartas chorosas e apaixonadas, sempre que vai para o campo de batalha, são entrecortadas por Josephine embebida em prazer na companhia de outros homens.
"Esse é o aspecto menos conhecido da vida dele, e é isso que eu procurava nesse projeto", diz Ridley Scott. "Josephine era uma sobrevivente, e para sobreviver, naquela época, você precisava de certa graça. Sendo um cara áspero da Córsega, Napoleão não tinha traquejo social. Ele a encontrou e percebeu que precisava dela. Mais do que ela precisava dele."
A abordagem, no entanto, causou furor na França. A imprensa local vem atacando o filme pelo retrato de seu mais famoso líder, com palavras como "desajeito" e "antinatural" --críticas ancoradas ainda no elenco anglófono. "Barbie e Ken sob o império", escreveu o Le Figaro; "muito antifrancês e muito pró-britânico", publicou a revista Le Point.
"Os franceses não gostam nem de si mesmos", retrucou Scott, em conversa com a BBC. Fora do país, as críticas estão divididas. Há quem tenha se esbaldado nos tons épicos da biografia, mas há também quem penou para ver brilho.
Cineasta de longas como "Blade Runner" e "Alien - O 8º Passageiro", recém-saído do morno "Casa Gucci", Scott não se incomoda, mas também não fala muito sobre seu "Napoleão", inevitavelmente, estar predestinado a viver à sombra dos planos que Stanley Kubrick tinha de filmar a vida do imperador francês. O projeto nunca se materializou, mas Steven Spielberg planeja reviver a obra em fomato de minissérie.
"Eu admiro o Stanley tremendamente, e fui fortemente influenciado por 'Barry Lyndon' no meu primeiro longa. Ele era um diretor muito complexo, estão só Deus sabe que caminho ele tomaria com seu roteiro sobre Napoleão."
Em termos de escala, no entanto, os projetos são equiparáveis. Kubrick queria milhares de soldados reais em seu filme, fato que contribuiria para os custos exorbitantes que mais tarde seriam impeditivos para as gravações. Já Scott abocanhou cerca de US$ 200 milhões de orçamento, de acordo com a The Hollywood Reporter, o equivalente a quase R$ 1,5 bilhão.
Isso se traduz em cenários opulentos, figurinos glamorosos e cenas de batalha épicas, que recuperam o senso de grandiosidade da era napoleônica como que para, ironicamente, apequenar ainda mais o Bonaparte visto em cena --e nem é preciso fazer piadas com sua estatura para isso.
Scott diz que a intenção era essa mesmo, que queria fugir de uma mera aula de história para dar ao público algo divertido, numa escala que só foi possível depois de quase seis décadas de carreira. Um filme sobre o imperador sempre ocupou sua mente, afirma o cineasta, mas era preciso acumular experiência.
E, com a espera, o filme acaba saindo num momento em que parece ter algo a dizer. É, afinal, a biografia de um dos mais conhecidos belicistas da história, chegando aos cinemas em meio a duas guerras que concentram atenções --a que opõe Rússia e Ucrânia, e aquela entre Israel e Hamas.
"Nós não aprendemos merda nenhuma. Todo mundo perde com a guerra. Os vitoriosos perdem, e os perdedores perdem mais ainda. Estamos vendo dois eventos horríveis acontecendo e eles são mera repetição do passado. É bizarro."
NAPOLEÃO
Quando: Estreia nesta quinta (23), nos cinemas
Classificação: 16 anos
Elenco: Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby e Tahar Rahim
Produção: EUA, Reino Unido, 2023
Direção: Ridley Scott
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