PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Dizem que o caçula costuma ser tratado com mais atenção pelos pais. No primeiro evento da Casa Folha em Paraty nesta sexta (24), o afeto seguiu na contramão: a tradutora e, como disse, "raspa do tacho" Júnia Guimarães Botelho homenageou sua mãe, a romancista, cronista e professora Ruth Guimarães, alternando passagens comoventes e passagens divertidas.

Nada de novo que uma filha reverencie aquela que a criou, mas Ruth não foi uma mãe qualquer. Tampouco uma mulher qualquer. Longe disso.

Nascida em Cachoeira Paulista (SP), em 1920, Ruth concluiu seu único romance, "Água Funda", com apenas 22 anos, antes de se formar em letras clássicas pela USP. A obra foi incensada por alguns dos principais críticos da época, como Antonio Candido. Não bastasse sua qualidade literária, teve um papel pioneiro já que, publicado em 1946, foi um dos primeiros romances lançados no país por uma autora negra.

Nas quase sete décadas seguintes -morreu em 2014, aos 93 anos-, ela publicou livros de contos e poesias, além de traduções. Foi colunista da Folha de S.Paulo na década de 1960, onde escreveu principalmente crônicas, e colaborou com outros jornais. Não menos importante: teve nove filhos.

"Sempre me perguntam se a Ruth era uma ativista negra. Eu digo: ela era uma ativista. Ponto. Falava e escrevia sobre questões do feminismo, da negritude, da pobreza e, principalmente, da educação", afirmou Júnia no encontro, que teve mediação de Gabriela Mayer, jornalista da Folha de S.Paulo.

A mesa previa ainda participação de Juliana Borges, mas a escritora não pôde vir a Paraty.

Ruth, como lembrou a filha, não raro unia diferentes ativismos nos textos e nas conversas. "Professora de 40 horas semanais" por décadas na cidade do Vale do Paraíba, ela sempre incentivava "os irmãos negros a ir para a escola".

A autora gostava de se apresentar como "mulher, negra, pobre e caipira". Como se sabe, esse último adjetivo tem sentidos múltiplos: neste caso, não vale definitivamente o caminho depreciativo, como sinônimo de inculta.

Leitora contumaz, ela preparou o "Dicionário de Mitologia Grega", reeditado no ano passado, traduziu contos de Balzac e Dostoievski e compilou fábulas da cultura brasileira. Não ostentava, contudo, um ar intelectualmente pretensioso, segundo Júnia.

"Ela conversava com o capinador e com o confrade da USP. Ninguém se sentia 'menos' ao lado dela, minha mãe não tinha um tom professoral", disse.

Curiosa e observadora, Ruth teve seus dias de repórter na revista Manchete. Era tamanho seu interesse por pessoas e livros que relegava os objetos do dia a dia a uma bagunça caseira. "Minha mãe era uma grande desordeira [risos]", contou a tradutora. "Deixou mais de mil páginas soltas sobre medicina popular e tinha uma máquina de escrever em cada canto: no quarto, na cozinha, embaixo da mangueira."

Há preciosidades em meio a essa barafunda que Júnia busca organizar. Entre elas, cartas recebidas de autores que a admiravam, como Mário de Andrade, Câmara Cascudo e Roger Bastide.

Aos poucos, sobretudo por iniciativa da família, a obra ganha vida nova. Na Casa Folha, Júnia lançou "Marinheira no Mundo" (Primavera Editorial), uma seleção de crônicas, a maior parte delas publicada na Folha.

E "Água Funda", seu livro fundamental, parece em vias de conquistar o reconhecimento que merece, o status de clássico. A recém-divulgada lista de leituras obrigatórias da prova da Fuvest de 2025 incluiu o romance.

"Minha mãe achava que seria imortal. Quando morreu, estava gestando vários livros, inclusive um romance", lembrou Júnia. Quem disse que Ruth nos deixou?


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