SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Mania Akbari não deixou o Irã porque quis. "Após fazer meu primeiro longa-metragem, durante 12 anos o governo pegou meu passaporte e o devolveu. Várias vezes a mesma coisa. Confiscaram simplesmente porque eu não usava hijab em festivais e por causa dos filmes não autorizados que fiz."

"Eventualmente", conta à Folha a cineasta de 49 anos, hoje moradora de Londres, "o regime disse num site que eu estava em Lisboa com HIV". Ficou claro que, mais do que persona non grata em sua terra natal, se insistisse em continuar ali ela poderia ter destino parecido ao de tantos colegas. Como Jafar Panahi, premiado nos festivais de Berlim, Veneza e Cannes, preso duas vezes por autoridades iranianas. A primeira acusação: "Propaganda contra o sistema".

Digamos que "How Dare You Have Such a Rubbish Wish" (como você se atreve a desejar algo tão terrível, em português), documentário que Akbari apresentou em outubro na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, não é exatamente um colírio para os olhos da teocracia sob guarda do aiatolá Ali Khamenei. O filme faz um corte e colagem com várias obras do cinema iraniano para escancarar o olhar masculino sobre mulheres em cena.

Quase todas as imagens precedem 1979, quando o país substituiu uma ditadura secular apoiada pelos Estados Unidos por uma república xiita na chamada Revolução Iraniana. Era uma outra realidade para as mulheres que ali viviam. Umas optavam com véu islâmico enquanto outras podiam sair à vontade de minissaia se bem entendessem.

São situações inimagináveis para um regime acusado de assassinar as jovens Mahsa Amini, de 22 anos, e Armita Geravand, de 16, por violarem um código de vestimenta que força a população feminina a cobrir seus cabelos. Um dos trechos pinçados do cinema passado enfileira, por exemplo, iranianas dançando com pernas de fora ao som de "Respect", da Aretha Franklin.

"Nossas mulheres são resilientes e guerreiras porque aprenderam a resistir sob a estrutura patriarcal", afirma Akbari, que antes de comandar as próprias obras ficou conhecida por trabalhar como atriz com o diretor Abbas Kiarostami. Ser "feminista e ativista" num governo que define como fascista não vem livre de fraturas para qualquer uma que se atreva a desejar uma carreira artística. Começou a receber esse boleto moral em 2004, ao lançar "20 Dedos", drama que discute o papel dos gêneros no Irã.

Mas não se engane: a chancela governamental pré-1979 para deixar cabelos ao vento ou usar a roupa que quisesse não era sinônimo de liberdade para a metade considerada inferior da população. As cenas que costura em seu documentário evisceraram o machismo presente muito antes do aiatolá Khamenei assumir o poder.

Numa delas, um personagem se vangloria de ser o homem mais sortudo do mundo porque estava casando com a mais submissa das mulheres. Várias outras escrutinam a silhueta feminina como se o diretor fosse um desenho animado que deixa a língua desabar ao chão tamanha a volúpia pela fêmea na câmera.

Akbari abre sua obra clamando seu corpo de volta e, por extensão, o de todas as mulheres. Ao dizer que não está "fazendo um filme", e sim "olhando para o seu olhar", é como se propusesse um acerto de contas com a perspectiva masculina que prevaleceu até aqui sobre o cinema da sua terra. Nosso corpo, nossas regras.

Isso também vale para países ocidentais que, em nome da laicidade, fazem leis para banir o véu islâmico dos espaços públicos. Se você pensou na França, você pensou certo. "Forçar alguém a remover o seu hijab não é diferente de um governo obriga a usá-lo. Ambos os cenários representam um controle ditatorial sobre os indivíduos, buscando governar e controlar o corpo feminino."

A vida londrina lhe impõe um papel incômodo de "migrante forçada", afirma. "Este elo cortado com o Irã cria uma estranha dualidade, na qual você está sempre em busca de um passado do qual está privado. Minha língua principal é o farsi. A linguagem é a ferramenta de conexão, e você nunca poderá construir sua primeira casa com seu segundo idioma."

É em farsi que ela comenta as imagens que vemos na tela. Na abertura, seus seios desnudos, prestes a serem tatuados com motivos florais. Reivindicar sua nudez revela cicatrizes deixadas por um câncer de mama do qual se recuperou, quando "experimentou uma forma de morte dentro de um corpo vivo", diz. "Mas estou aqui e continuo."

Para Akbari, quando desenha flores nas mamas reconstruídas após a doença, transforma a própria pele numa carta do passado. "Como uma linda flor que registro sobre memórias dolorosas da minha história, eu me imprimi e me emancipei das mãos dominantes do patriarcado."

É em inglês que Akbari faz, nas redes sociais, a maioria das críticas à guerra que o governo israelense trava na Palestina após os ataques terroristas de 7 de outubro.

Não mede palavras aqui. O Hamas existe porque "o regime fascista de apartheid" existe do outro lado, diz. "Hoje vi a imagem de uma criança se rendendo com as mãos para cima, saindo de sua casa e de sua pátria com a mãe. Se essa criança pegar em armas no futuro e atacar Israel, não será um terrorista. Israel, nos seus 70 anos de ocupação, tem um histórico de ódio, genocídio, assédio, tortura e prisão contra o povo palestino."


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