BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A manobra do governo Jair Bolsonaro (PL) para liberar emendas parlamentares à custa de cortes de verbas na ciência e na cultura virou alvo de críticas de especialistas por atropelar despesas já decididas pelo Congresso e privilegiar aliados do presidente às vésperas da eleição.
Siglas de oposição acionaram o STF (Supremo Tribunal Federal) na tentativa de suspender os cortes, bem como o decreto que autorizou o governo a destravar R$ 3,5 bilhões em emendas de relator, usados como moeda de troca nas negociações com o Parlamento. O ato foi publicado na noite de 6 de setembro, véspera do feriado de Bicentenário da Independência.
Autor de uma das ações, o PSOL afirma que a destinação dessas verbas "interfere na lisura e no equilíbrio das eleições, afetando a igualdade de oportunidades entre os candidatos". Para juristas, o tema pode vir a ser avaliado pela Justiça Eleitoral, embora ainda não haja posição consolidada sobre o tema.
Essa será a primeira eleição para cargos estaduais e federais, incluindo as cadeiras no Congresso Nacional, realizada sob a existência do mecanismo das emendas de relator, estabelecido em 2019 para vigorar no ano seguinte.
O líder da minoria no Senado, Jean Paul Prates (PT-RN), apresentou um projeto de decreto legislativo com o mesmo objetivo de anular os efeitos do decreto que liberou as emendas de relator, mas o texto ainda não foi analisado pelo Legislativo --alguns de seus integrantes serão beneficiados pela manobra.
O advogado Francisco Zardo, professor de direito administrativo, lembra que o arcabouço de regras eleitorais foi elaborado antes da criação das emendas de relator. Por isso, embora a lei eleitoral (cujo texto original é de 1997) deixe margem para o empenho de emendas no período eleitoral, isso não significa que a questão esteja livre de controvérsia.
"O Orçamento público não pode ser manejado para obtenção de proveito nas eleições. As vedações [da lei eleitoral] buscam isso", diz. "Teria que analisar toda essa engenharia para saber se de fato está havendo uma tentativa para utilizar o Orçamento com objetivo eleitoral. Caso confirmado, seria abuso de poder político", afirma.
O empenho é a primeira fase do gasto, quando o governo se compromete com determinada contratação de bens ou serviços. Segundo técnicos do governo, a AGU (Advocacia-Geral da União) tem uma interpretação de que a lei eleitoral veda o repasse financeiro de despesas que já não estivessem em andamento.
Dessa forma, "atos preparatórios" à execução de emendas --como o empenho da despesa-- estariam autorizados mesmo em período eleitoral.
A liberação das emendas foi possível após uma engenharia do governo Bolsonaro para, de forma unilateral, cortar despesas que já haviam sido autorizadas pelo Congresso Nacional. A tesourada abriu espaço para as emendas dentro do teto de gastos -regra fiscal que limita o avanço das despesas à inflação.
A manobra, revelada pelo jornal Folha de S.Paulo, envolveu duas MPs (medidas provisórias) editadas por Bolsonaro para adiar ou limitar despesas de ciência e cultura aprovadas anteriormente pelo Legislativo. Como têm vigência imediata, as medidas permitiram jogar R$ 5,6 bilhões em gastos para 2023 e abrir caminho ao desbloqueio de R$ 3,5 bilhões em gastos carimbados pelos parlamentares.
Uma das MPs limitou a R$ 5,6 bilhões os gastos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) em 2022. Como a obrigação antes era maior, na prática o governo ganhou espaço no Orçamento.
A outra medida adiou os repasses das leis Paulo Gustavo (R$ 3,8 bilhões neste ano) e Aldir Blanc, de auxílio à cultura em estados e municípios, e do Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), aprovados pelo Congresso como resposta à crise causada pela pandemia de Covid-19 nesses setores.
Os repasses haviam sido autorizados pelo Congresso, mas foram vetados por Bolsonaro. Em reação, o Legislativo derrubou os vetos, restabelecendo a ajuda financeira, agora adiada numa canetada pelo presidente da República.
Uma medida provisória tem força de lei a partir do momento de sua publicação, com duração de até 120 dias --período em que precisa ser ratificada pelos parlamentares para permanecer em vigor. Na prática, mesmo que os congressistas se recusem a votar o texto, ele só perderá validade no ano que vem, e a despesa já terá sido adiada.
O diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado, Daniel Couri, destaca que, na exposição de motivos para o envio das MPs, o governo alega que os cortes foram necessários para permitir o "desembolso de forma planejada" dos recursos, respeitando o teto de gastos.
"Se o governo tiver que cumprir vinculação do fundo [FNDCT], tem um problema com o teto. Mas no fundo eles estão abrindo espaço para gastar mais dentro do teto. Ou seja, a MP pedala esses gastos, e o governo usa esse espaço para liberar emendas", analisa Couri.
"É um argumento frágil. Não quiseram falar que eles têm outras prioridades para gastar", critica.
O diretor-executivo da IFI avalia ainda que a manobra configura uma "forma de driblar" uma escolha feita pelo Parlamento, de destinar mais recursos para ciência e cultura. "A MP tira a chance de o Congresso fazer a escolha alocativa", diz.
O advogado Francisco Zardo afirma que as regras que regem o FNDCT são previstas em uma lei complementar, instrumento que, via de regra, não pode ser modificado por MP -a medida provisória, quando aprovada, é convertida em lei ordinária, que fica um degrau abaixo na hierarquia de leis no arcabouço brasileiro.
"Esse ponto merece uma análise jurídica, pois pode ser um obstáculo insuperável ao avanço dessa MP. Se alguém concluir que [a medida] está alterando matéria reservada a lei complementar, é até inconstitucional", diz.
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