SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O próximo governo terá que negociar um novo acordo com os partidos que dão as cartas no Congresso a partir do ano que vem se quiser retomar o controle sobre os escassos recursos disponíveis no Orçamento da União para obras e outros investimentos.
Na avaliação de Rodrigo Oliveira de Faria, ex-coordenador do processo orçamentário na Secretaria do Orçamento Federal, essa negociação será essencial para que o Executivo recupere instrumentos necessários para estabelecer prioridades e organizar sua base de apoio.
Nos últimos anos, os líderes do Congresso passaram a definir o destino de uma fatia crescente do Orçamento, graças a um acordo fechado por Jair Bolsonaro (PL) com os partidos do centrão, que lhes deu controle sobre bilhões de reais reservados para emendas parlamentares.
O arranjo ampliou o alcance das emendas do relator-geral do Orçamento, que reservaram R$ 16,5 bilhões para redutos eleitorais de deputados e senadores neste ano. Partidos de oposição questionaram a legalidade dessas emendas no Supremo Tribunal Federal, que ainda não pautou o julgamento das ações.
Para Faria, a adoção de critérios igualitários na distribuição dos recursos destinados a essas emendas, como sugerem vários críticos do mecanismo, deixaria o próximo governo sem uma ferramenta essencial para a formação de uma base de apoio estável no Congresso.
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PERGUNTA - A Constituição de 1988 permite que deputados e senadores façam emendas ao Orçamento proposto pelo Executivo, mas estabelece limites. Como o Congresso conseguiu ampliar tanto o alcance dessas emendas?
RODRIGO OLIVEIRA DE FARIA - Houve mudanças na Constituição e um processo lento e gradual de alteração das normas internas que detalham os procedimentos para a análise do Orçamento no Legislativo. Esse processo atingiu o ápice no atual governo, mas ele começou há mais de dez anos.
A própria Constituição remete para os regimentos internos do Congresso a definição de regras para as emendas. Isso permitiu ampliar as possibilidades de alocação de recursos pelos congressistas, indo muito além das correções de ordem técnica que são previstas pela Carta.
As normas internas conferem ao relator-geral do Orçamento poderes amplos e deixam a critério dele a definição das áreas que podem ser beneficiadas pelas suas emendas. Hoje, essas normas permitem que o relator use suas prerrogativas para criar todo tipo de despesa.
P - Isso não contraria os princípios estabelecidos pela Constituição?
ROF - Os partidos que foram ao Supremo Tribunal Federal questionar a legalidade das emendas do relator argumentam que sim. Auditores do Tribunal de Contas da União também pensam assim. Caberá ao STF decidir se houve abuso de prerrogativas e algo precisa ser corrigido.
O Supremo nunca entrou no mérito dos critérios adotados pelo Congresso, em particular no caso das emendas do relator. Sempre se considerou que isso era assunto do Legislativo. Se o STF fizer novas exigências ao julgar essas questões, estará mudando sua jurisprudência.
P - O Congresso controla uma fatia crescente dos recursos disponíveis para investimentos e outras despesas de caráter discricionário. Por que isso é um problema?
ROF - O que os parlamentares fizeram foi diminuir a discricionariedade do Executivo, que antes podia redefinir prioridades durante a execução do Orçamento. Deputados e senadores ficavam peregrinando nos ministérios para conseguir recursos e isso alimentava muitas reclamações.
Embora muitas pessoas vejam como um problema esse tipo de atuação dos parlamentares, ela atende a demandas da própria sociedade, que espera dos seus representantes no Congresso que levem recursos para suas bases eleitorais. É legítimo, e acontece no mundo inteiro.
Para o Executivo, a discricionariedade no manejo desse dinheiro sempre foi essencial para formação de coalizões partidárias que dessem sustentação ao governo no Congresso, porque ele podia segurar a liberação das verbas e privilegiar parlamentares que o apoiassem.
No caso de emendas individuais e de bancadas, isso acabou quando as mudanças introduzidas na Constituição tornaram sua execução impositiva, ou seja, obrigatória. Isso eliminou a discricionariedade que o governo tinha para controlar a liberação desses recursos.
Com a ampliação do alcance das emendas do relator, um instrumento que era usado excepcionalmente para ajustes pontuais passou a servir para criação de todo tipo de despesa. O pêndulo da discricionariedade oscilou de um extremo a outro e agora ela está com o Legislativo.
P - As emendas do relator são criticadas por serem pouco transparentes e por causa da falta de critérios equitativos na distribuição do dinheiro. Essas críticas fazem sentido?
ROF - A transparência está melhorando. Os sistemas desenvolvidos para atender às exigências feitas pelo Supremo no ano passado permitem verificar onde os recursos são aplicados e quem são os responsáveis pelas indicações acolhidas pelo relator. Antes, era impossível saber.
No caso das emendas individuais e das emendas de bancada, a divisão igualitária se tornou obrigatória, por determinação constitucional. Mas isso criou dificuldades para o governo, que contava com a discricionariedade na liberação dessas emendas para formar sua coalizão.
Não há a mesma exigência no caso das emendas do relator, e é por isso que elas cresceram. Esse instrumento se tornou essencial para o governo e seus aliados no Congresso porque agora só ele permite tratar de forma diferente quem apoia o governo e quem se opõe a ele.
Se um critério igualitário for adotado para as emendas do relator também, como sugerem os auditores do Tribunal de Contas da União, a caixa de ferramentas de que o Executivo dispõe para compor sua base de sustentação no Legislativo ficará completamente desmantelada.
P - O Executivo ainda pode controlar o ritmo de liberação dos recursos.
ROF - Sim, mas essa discricionariedade também foi muito reduzida. No caso das emendas individuais e de bancada, não é mais possível, desde que se tornaram impositivas. Há critérios legais estabelecidos para o contingenciamento das despesas, inclusive as previstas pelas emendas.
Mesmo no caso das emendas do relator, isso ficou mais difícil porque a Constituição estabelece que a execução dessas despesas é um dever da administração. Ou seja, se elas não forem executadas, os servidores dos ministérios ficarão sujeitos a ações dos órgãos de controle.
P - Por que sucessivos governos cederam tanto espaço ao Congresso?
ROF - No início, os parlamentares argumentavam em favor de critérios mais igualitários na liberação dos recursos, para que todos fossem atendidos, independentemente do apoio ao governo. Isso foi obtido com a execução impositiva das emendas individuais e de bancada.
A ampliação do alcance das emendas do relator é um desdobramento desse processo, mas o governo Bolsonaro abriu mão das suas prerrogativas ao ceder para o relator-geral os poderes que tinha para controlar a distribuição do dinheiro e a execução dessas despesas.
Bolsonaro, como Dilma Rousseff (PT) antes dele, enfrentou dificuldades na relação com o Congresso e por isso cedeu poder. Mas nada impede que o processo orçamentário sofra novas modificações e o presidente, com um relator-geral alinhado a ele, retome parte de suas prerrogativas.
Desde a redemocratização, os presidentes da República sempre usaram as prerrogativas do Executivo para definir prioridades no Orçamento e articular apoio no Congresso. Bolsonaro abriu mão disso. Se um espaço de poder não é ocupado, alguém o ocupará, e foi isso que ocorreu.
P - Por que os líderes do Congresso abririam mão dos poderes que adquiriram?
ROF - Reverter esse processo, para que o Executivo retome algumas das prerrogativas que cedeu, exigirá do próximo governo uma composição ampla com as forças no Congresso. As resistências serão significativas, mas qualquer governante que assuma terá que enfrentar o desafio.
Algumas coisas poderiam ser ajustadas com mudanças nas normas internas, sem alteração de leis ou dispositivos constitucionais. Um novo governo pode usar a própria composição do ministério nessa negociação com os partidos, como foi feito em administrações anteriores.
Aliás, o fato de o governo Bolsonaro ter vedado indicações partidárias para os ministérios é provavelmente uma das explicações para o crescimento das emendas. Como os partidos governistas não foram atendidos na formação do governo, foi preciso buscar alternativas.
P - Essas práticas abrem caminho para corrupção ao deixar tantos recursos sob controle dos partidos?
ROF - No início do atual governo se vendeu uma nova política que apontava como pouco republicana a composição de um governo com os partidos que o apoiam. Mas coalizões desse tipo funcionam bem em democracias no mundo inteiro, em regimes presidencialistas e parlamentaristas.
A corrupção não é inerente a esse sistema, e não há necessidade de que sejam feitas negociações pouco republicanas, ou corruptas, para que os partidos que compõem a base parlamentar de um governo ocupem postos no ministério. Compartilhar poder é chave nesse processo.
A corrupção existe e precisa ser enfrentada, por qualquer governo que queira atender às aspirações da sociedade e executar despesas legítimas. É necessário ter estratégia para combatê-la com inteligência e fechar brechas que impedem a ação dos órgãos de controle.
Mas eu não vejo nas mudanças feitas no processo orçamentário uma estratégia deliberada para desviar recursos. Há, sim, um objetivo claro de reduzir a discricionariedade do Executivo, transferir prerrogativas para o Congresso e empoderar seus líderes. O pêndulo se deslocou.
P - O governo usa melhor os recursos do Orçamento do que os parlamentares com suas emendas?
ROF - Há critérios políticos na definição das despesas no Congresso, mas o mesmo também ocorre no âmbito do Executivo quando a destinação das verbas é decidida ali. Há quem diga que o processo de alocação no Congresso é menos eficiente, mas não há evidências sólidas disso.
O que há, sim, é a necessidade de um processo de concertação, em que o Executivo defina prioridades e construa espaço para aprovação das suas medidas e alocação de recursos de acordo com suas prioridades. Nada impede que isso seja feito em conjunto com os parlamentares.
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RODRIGO OLIVEIRA DE FARIA, 47
Gestor público federal, foi secretário-executivo adjunto do Ministério da Justiça de 2012 a 2016 e coordenador-geral do processo orçamentário na Secretaria de Orçamento Federal de 2016 a 2020. Com mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), atualmente cursa doutorado.
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