SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "O Brasil continua com o maior e o melhor sistema de controle de venda de armas e munições do mundo. Somos o único país do mundo que marca munição. Todas as nossas armas são rastreadas."
A afirmação é de Salesio Nuhs, presidente da Taurus, que defende normas rígidas para a compra de armas de fogo no Brasil. Segundo ele, as regras não podem ser impeditivas, mas precisam existir para proporcionar um futuro mais seguro.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o executivo argumenta que o país não flexibilizou o acesso a armamentos nos últimos anos. A exigência e a burocracia, ele diz, continuam as mesmas. "O que aconteceu é que foram liberados mais calibres."
Medidas pró-armamento ganharam terreno durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que defende a pauta e estimula que o cidadão comum se arme. Durante seu mandato, o número de pessoas com licenças registrou aumento de 473%, como resultado dos 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei que o governo federal editou sobre o tema. De 2018 para cá, as ações da Taurus tiveram valorização de 670%.
Nuhs também contesta o argumento de que a indústria de armas e a pauta sustentável são coisas contraditórias. Na verdade, ele diz, o setor está diretamente ligado ao ESG (sigla em inglês para os princípios ambiental, social e de governança corporativa).
"Esse é um assunto que está muito evidente com a Guerra da Ucrânia, exatamente por causa desse conceito. Uma indústria de defesa, essencialmente, tem que ser ESG. Estamos falando de segurança nacional, de desenvolvimento da economia e de apoio ao desenvolvimento de novas tecnologias. As principais tecnologias do mundo vieram da área de defesa. A própria internet veio daí", afirma.
Nos últimos meses, a única fabricante de pistolas, revólveres e fuzis da Bolsa começou a olhar para o tema da sustentabilidade internamente. No começo do ano, a empresa contratou uma consultoria internacional para entender como se posicionar nesse tema e, recentemente, criou uma área e um comitê para lidar com os assuntos de ESG.
P - Como a Taurus avalia a atual onda ESG do mercado?
SALESIO NUH - A Taurus não considera uma onda. Eu concordo que existe uma onda ESG pelo mundo e muitas empresas entram para cumprir tabela e serem politicamente corretas, mas esse não é o nosso caso. A pauta ESG sempre esteve dentro das prioridades da Taurus.
Nesses últimos quatro anos, desde que começou nossa gestão aqui na companhia, fizemos uma reestruturação em todos os processos operacionais, administrativos, comerciais. Agora chegou a hora de olhar para o ESG.
Nós entendemos que o processo de ESG vem agregar novas ideias para as ações que a nossa gestão já vem adotando. Um exemplo: no auge da pandemia, nós tomamos conhecimento de um projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul de face-shield [escudo facial para proteger contra o contágio pelo coronavírus] e a Taurus imediatamente começou a produzir esses face-shields e distribuir para o Brasil inteiro, sem nenhum custo. Foram mais de meio milhão de peças.
Por trás disso ainda tem outras ações. Nós duplicamos a capacidade de UTIs aqui na cidade [São Leopoldo-RS] com respiradores e bombas de infusão. Isso sem nenhum interesse a não ser o interesse social.
Em janeiro, começamos a discutir sobre esse assunto e em março contratamos a [consultoria] Ernst & Young para fazer um levantamento sobre como a companhia estava posicionada. O trabalho foi entregue em maio. Depois disso, decidimos montar uma área de ESG, para incorporar a cultura na companhia, porque eu não quero simplesmente emitir um relatório de sustentabilidade. Acima dessa área nós criamos um comitê de ESG, formado por toda a alta direção.
P. - Existe o argumento de que indústrias de armas e a pauta ESG são coisas contraditórias. Como enxerga isso?
SN - Essa é uma visão míope e preconceituosa. Uma indústria de armas não é só uma indústria de armas. Somos uma indústria estratégica de defesa, nomeada pelo Ministério da Defesa -e não [estou falando] do atual governo, mas de governos anteriores.
Esse é um assunto que está muito evidente com a Guerra da Ucrânia, exatamente por causa desse conceito. Uma indústria de defesa, essencialmente, tem que ser ESG. Estamos falando de segurança nacional, de desenvolvimento da economia e de apoio ao desenvolvimento de novas tecnologias. As principais tecnologias do mundo vieram da área de defesa. A própria internet veio daí.
Quando falamos de segurança nacional, de segurança pública, de segurança das pessoas, falamos em assegurar a paz, a estabilidade e a sustentabilidade social, através da defesa da liberdade, dos direitos humanos e da ética.
P. - Por que alguém põe uma cerca elétrica em casa ou um porteiro eletrônico?
SN - Porque quer proteger as pessoas que gosta. Ter um cachorro no pátio da residência não significa que a pessoa é violenta. Essa é a visão que nós temos da indústria de defesa. O país que tem uma indústria de defesa forte, naturalmente, está protegendo a sua população -e não significa que ele é um país agressivo. Pelo contrário, para ter a paz, é preciso estar preparado.
No meu entendimento, ESG está diretamente ligado à indústria estratégica de defesa. A Taurus está sendo pioneira, não tenho conhecimento de outra indústria do nosso segmento que esteja criando a cultura ESG. Não estamos cumprindo tabela para emitir um relatório de sustentabilidade. Pelo contrário, estamos trazendo para dentro da Taurus essa questão de uma maneira formal.
P. - Como é o mercado da Taurus hoje?
SN - O foco é no consumidor varejo, nas corporações...
Originalmente, a Taurus é uma empresa voltada para o mercado civil americano. Aqui no Brasil, temos uma forte atuação no mercado de segurança pública. Até porque o mercado brasileiro não é muito grande.
Na semana passada, a Guarda Nacional das Filipinas veio à Taurus fazer o recebimento de uma quantidade de armamentos. O Exército Nacional das Filipinas tem o nosso armamento como padrão. Já atendemos mais de 100 países no mundo, e essa é a vocação da companhia.
P. - A indústria de armas está ligada a uma discussão de segurança pública. Existe uma parcela da sociedade que fala que flexibilizar o acesso às armas não é interessante. Como você vê essa discussão?
SN - Eu não emito minha opinião pessoal. Acho que a população brasileira já opinou sobre isso. Em 2005, ONGs e movimentos antiarmamentistas convenceram o governo a criar uma lei para ser referendada proibindo o comércio de armas e munição no Brasil. Mais de 65 milhões de brasileiros votaram a favor do direito à legítima defesa e à liberdade. Essa não é a minha opinião, isso foi o que aconteceu em outubro de 2005.
Não foram flexibilizados os critérios para compra de arma de fogo no Brasil. O Brasil continua com o maior e o melhor sistema de controle de venda de armas e munições do mundo. Somos o único país do mundo que marca munição. Todas as nossas armas são rastreadas.
Se olharmos o Atlas da Violência [do Fórum Brasileiro de Segurança Pública], vemos que nos últimos anos vários setores da sociedade diminuíram a violência. Não estou dando minha opinião, estou falando de fatos.
[O último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou queda no número de homicídios, que chegou à menor taxa desde 2011. O relatório, porém, destaca que "os dados disponíveis não autorizam o discurso segundo o qual o crescimento na quantidade de armas de fogo em circulação, sobretudo a partir das licenças de CAC (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) teria provocado a queda das mortes violentas intencionais no Brasil".]
P. - Quando você fala que não houve uma flexibilização, o que quer dizer?
SN - Toda a burocracia continua a mesma. O que aconteceu é que foram liberados mais calibres. A exigência e a burocracia continuam as mesmas.
Esse nosso segmento, te digo com toda a transparência, é extremamente polêmico. Agora, ele tem que ser entendido. As pessoas não perdem um minuto do tempo para entender, porque preferem uma visão míope e preconceituosa.
P. - Faz sentido para a empresa, dentro de uma discussão ESG, defender uma flexibilização do acesso às armas?
SN - A flexibilização de acesso às armas eu não sou favorável e nunca fui. Muito pelo contrário. Acho que o controle leva a um futuro mais seguro. O descontrole traz uma insegurança jurídica muito grande.
Como empresa que investiu mais de R$ 300 milhões nos últimos dois anos, só fizemos isso porque o nosso segmento é extremamente controlado, seja por legislação, por normas, normativas e tudo mais. Isso dá uma segurança para o segmento.
O descontrole é o contrário, não favorece a indústria legal. Nosso segmento é extremamente onerado pelos controles e impostos. É muito simples, quando trazemos a discussão para razão, fica muito mais fácil de entender.
P. - A empresa então não defende que seja mais fácil para o cidadão comprar armas?
SN - O descontrole, a falta de normas claras e rígidas, não é defendido pela indústria nacional. Nós defendemos regras claras e objetivas para o segmento. Agora, elas não podem ser impeditivas.
Se você quer alguma coisa e ela não está acessível de uma forma legal, você vai buscar de forma ilegal. Em qualquer segmento. O controle não pode ser impeditivo, mas tem que existir.
P. - Pensando na agenda ESG, como a empresa atua para evitar que as armas não sejam usadas pelo crime organizado?
SN - Cumprimos rigorosamente todos os protocolos, sem exceção. Auxiliamos todas as instituições de segurança pública do Brasil com relação à identificação de qualquer produto nosso, porque temos como rastrear. Tanto armas quanto munições.
O estatuto do desarmamento exigiu que as munições do Brasil fossem marcadas. Quem desenvolveu o sistema foi a indústria de munições. Investiu mais de US$ 1,5 milhão para conseguir um sistema para marcar e controlar. Não existe, desde que foi implementada a lei, nenhuma consulta, de nenhum órgão público, que não tenha sido respondida pela indústria com a entidade que adquiriu determinado lote. Isso é tecnologia.
Somos 100% alinhados às autoridades de segurança pública no Brasil, em todos os sentidos, e somos favoráveis aos controles. Somos contra qualquer coisa que impeça o cidadão de bem de ter acesso [a armas].
P. - Vimos a venda de armas e munições aumentar nesse período recente. Isso teve resultado positivo para a empresa?
SN - O mercado brasileiro para a Taurus é muito pequeno. Por mais que ele cresça, ele ainda é muito pequeno. O negócio da Taurus vem das exportações, seja de licitações internacionais ou do mercado americano -que é o maior do mundo. O mais importante disso tudo é a adequação da legislação à vontade do povo [expressa] em 2005.
P. - Como a Taurus se posiciona em relação às eleições?
SN - Nós não nos posicionamos. Temos um centro de inteligência que identifica possíveis riscos regulatórios -não só aqui, mas nos EUA e no mundo inteiro- e nós trabalhamos no nosso planejamento estratégico para minimizar os riscos que podem ameaçar as nossas empresas. Isso independentemente de ideologia e de governo.
Nós não podemos associar isso a nossa empresa. Somos uma empresa privada, que depende do planejamento estratégico para crescer e se desenvolver no mundo inteiro. Essa é a posição da companhia.
P. - O que a lei diz sobre posse de armas no Brasil?
SN - Aprovado em dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento definiu regras mais restritivas para o porte e comercialização de armas de fogo e munições no país. Para comprar, é preciso ser maior de 25 anos, ter ocupação lícita e residência certa, não ter sido condenado ou responder a inquérito ou processo criminal, comprovar a capacidade técnica e psicológica para o uso do equipamento e declarar a efetiva necessidade da arma.
Caçadores, colecionadores e atiradores desportivos também podem ter a posse de armas, mas o registro é realizado pelo Exército e segue critérios específicos para cada categoria.
Já o porte (direito de andar com arma na rua, por exemplo) é limitado a determinados grupos, como profissionais de segurança pública, membros das Forças Armadas, policiais e agentes de segurança privada. O direito é concedido pela Polícia Federal.
O que mudou com Bolsonaro? Desde 2018, o governo federal já editou 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei que flexibilizam as regras de acesso a armas e munições. Na sua gestão, além de estimular o cidadão comum a se armar, Bolsonaro deu acesso à população a calibres mais poderosos.
Os CACs foram grandes beneficiados dessas normas. Em 2019, o governo ampliou a autorização de transportar a arma municiada a caçadores e a colecionadores. Em 2021, outro decreto estabeleceu que o tráfego da arma independe da rota e do horário.
Os CACs têm aproveitado os decretos para andarem armados mesmo quando não estão a caminho dos locais de prática de tiro ou caça, o que, segundo especialistas, significa autorização para o porte, dada a subjetividade da regra.
RAIO-X
Salesio Nuhs, 62
Com mais de 30 anos de atuação no segmento de armas e munições, é CEO da Taurus desde 2018 e presidente da Aniam (Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições). Em 2005, coordenou a campanha do referendo popular sobre o comércio de armas de fogo no Brasil.
RAIO-X DA TAURUS
Operações: Unidades industriais em São Leopoldo (RS), na Geórgia (EUA) e em Haryana (Índia)
Clientes: Mercados militar, policial e civil no Brasil e em mais de 100 países
Número de funcionários: 3.666
Receita líquida em 2021: R$ 2,7 bilhões
Produção total em 2021: 2,3 milhão de armas
Receita líquida no 1º semestre de 2022: R$ 1,3 bilhão
Produção no 1º semestre de 2022: 1,1 milhão de armas
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