SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Luana Génot, 34, está à frente de uma organização que apoia algumas das maiores empregadoras do país em jornadas antirracistas. E não economiza palavras ao dizer que ainda falta engajamento de empresas, governos e da imprensa no tema.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, a diretora-executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) aponta passos lentos de instituições financeiras e do governo atual, que colocou negros e indígenas "para negar a demarcação de terras e o racismo".

Ao afirmar que "o mundo pensa que só existem problemas raciais nos Estados Unidos", Luana enxerga o Brasil como protagonista por ter um censo demográfico em que negros e indígenas afirmam sua raça.

Na visão da publicitária e escritora, que criou o selo "Sim à Igualdade Racial" e venceu o Prêmio Empreendedor Social 2022 na categoria Direitos Humanos, um futuro mais igualitário depende de que empresas, organizações, governos e imprensa se articulem melhor nesta agenda.

PERGUNTA - O que é imprensa negra?

LUANA GÉNOT - Na visão do ID_BR, imprensa negra ou indígena é aquela que enegrece seu pensamento, que é intencional nos temas e na periodicidade das pautas. Foge de estereótipos e bolhas. Jornalistas têm o papel fundamental de contar histórias, trazer pontos de vista diferentes, e as redações ainda são muito embranquecidas, apesar dos esforços.

P.- Como os jornais brasileiros têm abordado pautas raciais?

LG- Negros e indígenas não estão nas matérias de capa. Somos procurados como personagens, não como especialistas. Veja meu exemplo. Sou diretora de uma instituição, também sou publicitária, executiva e escritora. Mas é recorrente me anunciarem como ativista, existe essa cola automática que nos reduz.

Não estamos acostumados a racializar os brancos, que estão nas capas e são especialistas em qualquer assunto, do clima à maternidade. Por que não consultar uma mãe indígena? Perdemos essa narrativa porque desumanizamos essas pessoas.

P.- Quais os principais erros e acertos da imprensa neste sentido?

LG- Tenho uma análise subjetiva porque não temos pesquisas recentes para avaliar palavras mais utilizadas nas redações, por exemplo. Acredito que a imprensa evoluiu ao ser mais intencional na busca de personagens. Percebo que há mais colunistas negros também, mas poucos indígenas.

É preciso desagregar esse "grupo" de negros e indígenas. Há aldeados que trabalham em projetos de descarbonização, são especialistas em clima, atuam pela preservação das águas, contra o desmatamento. Mas quem fala sobre esses temas são sempre homens brancos. As vozes deveriam complementares, mas ainda estamos em caixinhas.

A população indígena aparece para falar de 200 anos de Brasil, negros ainda são associados a efemérides ou casos criminais. Por que não procuram o ID_BR para falar sobre taxa de desemprego ou mercado de trabalho?

P.- Uma parcela da sociedade é resistente ao discurso antirracista. Vemos isso em comentários no site da Folha de S.Paulo e nas redes sociais. A que se deve isso?

LG- Nosso país foi forjado no mito da democracia racial. Aprendemos que aqui só existe desigualdade socioeconômica. Desconstruir esse mito fundador é um desafio porque fomos expostos a esse discurso durante muito tempo.

Sete em cada dez negros são impedidos de ascender socialmente apenas pela cor da pele. Se não tivermos credenciais, vão dizer que não temos o perfil, e sabemos o que isso quer dizer. No discurso do brasileiro médio, se eu lutar, posso chegar lá. Não é verdade.

É importante bater nessa tecla para curar essa doença social. Dá a impressão de que a gente convive harmoniosamente, mas sabemos a cor de quem mora no Itaim e a cor de quem mora no Capão Redondo (SP). Sabemos a cor da tia do café e a cor do CEO. Precisamos de uma educação antirracista.

E tem ainda a lente da religião, porque a Bíblia diz que Deus não vê as pessoas como desiguais. Mas o homem e a mulher veem, aprendemos a hierarquizar pelas diferenças. Negar o racismo não ajuda o progresso do país e afasta a juventude das igrejas.

Precisamos atualizar a linguagem da fé à realidade contemporânea, levar esse assunto a centros religiosos. Vimos nestas eleições como o discurso teocrático rege a vida das pessoas. É preciso colocar discursos antirracistas na boca de padres, pastores e rabinos.

P.- Como o Brasil evoluiu na pauta antirracista nos últimos anos?

LG- Houve progressos locais. Governos estaduais fizeram esforços para avançar, como a secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, que fez aporte importante para letrar professores.

No âmbito federal, houve sucateamento de investimentos. O Ministério da Igualdade Racial, que já era uma pasta pequena no governo anterior, se tornou secretaria dentro do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Em seu discurso, Lula fez um compromisso verbal ao propor a recriação do ministério extinto e de outro dedicado aos povos originários. Mas não podemos ter pessoas negras e indígenas limitadas a estas pastas.

Precisamos de pessoas conscientes dos problemas estruturais em cargos comissionados, que são menos visíveis pela população. No governo atual, vimos negros e indígenas sendo usados para negar a demarcação de terras e o racismo.

P.- O ID_BR planeja atuar com política pública?

LG- Em nossos primeiros anos, construímos relações com o setor privado, que gera empregos e faz a roda girar. Agora, com mais experiência e a oportunidade de diálogo aberta a partir de fala do Lula, projetamos uma área de advocacy para atuar com instâncias públicas em pautas antirracistas, apoiando o letramento de gestores públicos.

P.- O que falta para o Brasil ser protagonista na luta antirracista?

LG- Estamos na frente, por exemplo, em informação sobre as populações negra e indígena. O IBGE coleta dados de autodeclaração há dois censos seguidos. A França não faz isso, o Reino Unido não faz isso.

Cor e raça têm a ver com emprego, segurança alimentar, moradia. Conseguimos detectar e temos força para apontar a segregação racial e criar políticas públicas para lutar contra essa diferença. Diria que falta investimento público e privado, dinheiro na mesa para enfrentar o problema.

Temos apoiado o setor varejista, que tem teto de vidro aparente, mas falta engajamento de outros setores. Falta essa agenda chegar nos CEOs, falta transparência sobre negros e indígenas em cargos de liderança. Instituições financeiras ainda dão os primeiros passos e precisamos de passos mais rápidos e robustos.

P.- Estados Unidos é um exemplo de protagonismo?

LG- Desde George Floyd, eles têm mais transparência em seus compromissos. Há um banco que diz publicamente o quanto e como vai investir nesta agenda.

Mas há uma associação automática de que nos Estados Unidos há racismo e de que lá o combate seria maior. Esse discurso cola, pois os norte-americanos são associativistas. Eles se unem para lutar por direitos e ganham protagonismo.

Só que essa visão oculta a pauta global. Essa agenda é do Brasil, é da Argentina, da China, da Indonésia. Há racismo no México, onde afro mexicanos só começaram a ser contabilizados no censo em 2020. Confitos étnico-raciais são ocultados porque o mundo pensa que só existem problemas raciais nos Estados Unidos.

P.- Com todos esses avanços e desafios, como você se coloca nesse movimento?

LG- Não tenho outra opção a não ser otimista. Há seis anos, quando criei o ID_BR, sonhava em ter um espaço para abordar o tema sem ser voluntária, sem tempo parcial. Hoje temos 50 funcionários, mais de 80% negros.

Acredito que as coisas estão mudando. Tenho 34 anos. Quero chegar aos meus 80 anos vendo metade das empresas presididas por pessoas negras e indígenas. E se a gente se articular ?imprensa, organizações, empresas e governos?, é possível chegar lá.

A velocidade podia ser maior, talvez não veja isso em vida, mas a mudança está acontecendo.


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