SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O primeiro piquenique na companhias das irmãs, cunhados e sobrinhos, a primeira visita a uma livraria, a primeira vez no Museu da Língua Portuguesa. A primeira peça de roupa jeans, as primeiras tranças nos cabelos, a primeira dança --ao som de Blitz.
Aos 51 anos, Thawanna Mendes tem vivido uma série de primeiras vezes, acumuladas desde que tomou coragem e, também pela primeira vez, pediu ajuda em um hospital. Vivia desde a adolescência em uma casa, onde trabalhava sem registro e sem direitos. Somente quando se viu internada é que a ficha começou a cair.
"Chorava muito porque eu não me conformava, estava lá e ninguém se preocupou comigo, eu cuidei de todo aquele pessoal. Aquela mágoa estava me deixando louca", diz. "Ainda voltei para lá [a casa], mas aí acordei. Eles mudaram por uns três dias. Depois, ela [a patroa], mesmo sabendo que eu precisava de repouso, pediu se eu tinha como fazer comida, se tinha como só arrumar o quarto."
Por 36 anos, Thawanna viveu com uma família que acreditou ser também a dela. Não era. Foi a babá, a cozinheira e a faxineira. Cuidou dos filhos e depois dos netos daqueles que a colocaram para trabalhar, junto a duas irmãs, quando ainda era adolescente. Não tinha salário, não estudava, não tinha amigos.
O pedido de ajuda definitivo chegou por intermédio de um fisioterapeuta que a atendeu em casa, como parte do tratamento de uma fratura no quadril. Dias depois, o Ministério Público do Trabalho chegava com a autorização judicial para retirá-la de lá.
O percurso até o fio de esperança ao qual se agarrou foi cheio de altos e baixos. Os primeiros seis meses, diz, foram piores. Por diversas vezes, quis voltar, quis se desculpar. "Sentia como se eles [a rede de assistência social e o MPT] estivessem destruindo minha vida, mesmo tendo sido eu quem pediu ajuda."
Thawanna não é o nome que aparece em sua certidão de nascimento, mas é aquele escolhido por ela para contar dos mais de 30 anos vividos em situação análoga à de escravidão. Antes disso, era o nome que queria dar a uma filha, um sonho que se perdeu no tempo.
Primeiro, pela vida delimitada pelo quarto das filhas dos patrões -onde dormia no chão- e a sala da casa, onde dormiu em um sofá nos últimos anos até deixar a família definitivamente. Depois, pelo trauma de ter sido vítima de abuso sexual em casa, pelo patrão, e outra vez, na rua, em uma das poucas vezes em que saiu sozinha.
Agora, mais de um ano depois do resgate, Thawanna faz planos para o futuro. Quer, assim como a escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra a quem tanto admira, escrever para dar voz a outras meninas e mulheres que passam ou passaram pelo mesmo sofrimento.
"Eu quero contar que a Thawanna sobreviveu, está livre e está começando um nova vida. A vida de sofrimento acabou."
Número de resgates em 2022 foi o maior em nove anos Em 2022, 2.575 trabalhadores foram encontrados pela fiscalização em condições degradantes de trabalho ou em jornadas exaustivas em todo o Brasil. O número foi o maior registrado pelo grupo volante de fiscalização desde 2013, quando 2.808 trabalhadores foram encontrados.
O rosto do trabalho escravo contemporâneo ainda é masculino e predominantemente na zona rural. A procuradora Lys Sobral, da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do Ministério Público do Trabalho, diz que hoje os homens são 90% dos resgatados. Em 2018, eram 95%.
Entre os trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão em 2022, 1.982 estavam no campo, quase 77% do total. E se o trabalho análogo ao escravo, no geral, tem rosto de trabalhador do campo, nos serviços domésticos ele é essencialmente feminino e preto.
No ano passado, 30 trabalhadores foram localizados em situação de escravidão doméstica. "Caso de homens ocorrem quando são caseiros de sítio, mas, em geral, nem são considerados domésticos", diz a procuradora.
Para ela, a prevalência de homens nas estatísticas de resgate denota a invisibilidade do trabalho doméstico. "A gente despertou de que existe uma forma de trabalho invisibilizada e que os casos de trabalho escravo doméstico custam a serem vistos. Tanto que na medida em que casos se tornam públicos, as denúncias são de que 'vi na TV e acho que é a situação da minha vizinha.'"
Desde 1995, quando o grupo interinstitucional de combate ao trabalho escravo foi criado, 60.251 trabalhadores foram encontrados em todo o Brasil em situações análogas à escravidão, 46.779 em serviços rurais.
A partir de 2017, o sistema que inclui a Auditoria Fiscal do Trabalho, MP do Trabalho e Federal, Defensoria Pública e as polícias Rodoviária Federal (PRF) e Federal (PF) passou a registrar também os casos de trabalho escravo doméstico, um dos mais difíceis de serem fiscalizados por esbarrar no direito constitucional da inviolabilidade de domicílio.
Enquanto os auditores podem entrar a qualquer momento em empresas ou propriedades rurais, o mesmo não vale para as residências. É necessário ter autorização judicial e, para pedi-la, indício de crime.
Pós-resgate é principal gargalo da política pública A política pública de enfrentamento ao trabalho escravo, prevista em um plano nacional, fala em três eixos de atuação, que são a repressão, a prevenção e o atendimento à vítima. Para a psicóloga social Yasmim França, o Brasil avançou muito no eixo repressivo, mas ainda caminha a passos lentos nos outros dois.
O trabalho no pós-resgate é igualmente importante, especialmente nos casos de trabalho doméstico. "A pessoa vivia naquela casa e ela se desterritorializou. Há então a necessidade de estimular a autonomia, expandir esse território", diz.
Yasmim coordena o projeto Ação Integrada, da Cáritas-RJ, organização que atua no processo de acolhimento e reinserção de pessoas resgatadas e que acompanha atualmente mais de 20 famílias em processo de readaptação.
Para os casos de trabalho doméstico, ela faz um paralelo às situações de violência doméstica. "Há uma mistura de afetos, de relações íntimas. Como na violência doméstica, há a redução da rede de apoio, que fica restrita ao violentador. Por isso, em todas essas violências há importância dessa rede externa à casa, ampliada."
As semelhanças com a violência doméstica conjugal vão além. Lys Sobral, do MP do Trabalho, diz que os procuradores têm pedido separação de corpos (liminar para que a pessoa seja retirada de casa imediatamente) com base na Lei Maria da Penha. "Há uma fragmentação na estrutura emocional dessas mulheres, é uma relação de abuso. A pessoa é leal e se sente mal de falar mal daquela família."
Quando são mulheres idosas, elas com frequência acabam indo para abrigos públicos, onde começam a reconstruir laços comunitários. Por meio da Cáritas-RJ, trabalhadores mais jovens e urbanos podem fazer cursos.
Na avaliação de Lys Sobral, o pós-resgate ainda é um dos gargalos da política pública, hoje resumida à garantia de três parcelas do seguro-desemprego. Para as mulheres em situação de escravidão doméstica, a legislação desse tipo de trabalho limita o benefício a um teto no valor de um salário mínimo.
"O trabalho doméstico ainda é um resquício da escravidão mesmo, é uma imensa maioria de mulheres, em um país muito tolerante com a violência", diz a procuradora.
Os procuradores têm tentado, caso a caso, garantir indenizações por danos morais a essas trabalhadoras. "Para que seja ressarcido aquele dano gravíssimo, mas também dar condições materiais da pessoa seguir adiante", afirma. "Cada vez mais se discute a necessidade de elevação do patamar dessas indenizações."
Nos casos de trabalho escravo doméstico, a indenização é, com frequência, a única possibilidade daquela mulher tomar algum controle da própria vida, pois é comum que percam outros laços sociais e familiares. Em casos que se tornaram públicos, procuradores brigaram na Justiça por outras soluções.
Madalena Giordano, de Minas Gerais, ficou 38 anos sob exploração por uma família e foi resgatada no fim de 2020. O apartamento em que viveu com a família agora é dela, afirma a procuradora Lys. A trabalhadora também tinha sido obrigada a casar com um militar. Por anos, a família se apropriou da pensão recebida por ela após a morte do marido --mais de R$ 8.000. Hoje, esse valor também é dela.
Em outro caso, de uma mulher resgatada em um bairro de classe alta em São Paulo, a empregadora da antiga patroa da idosa mobiliou uma casa e bancou um ano de aluguel para que ela pudesse refazer a vida.
"No trabalho escravo doméstico, temos pedido até mesmo pensionamento vitalício porque, dependendo da idade, vai ser muito difícil conseguir renda. Quando a família empregadora não tem condições de pagar um valor global de indenização, então que seja pago mês a mês."
Lucas Reis, da auditoria do trabalho, também defende que a política pública vá além da questão financeira. "O ideal seria haver uma política transversal."
As ações para o atendimento aos resgatados estão previstas no Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo, organizado a partir da Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo), ligada à pasta dos Direitos Humanos.
Os estados e municípios também organizam suas próprias comissões e fluxos, de acordo com as estruturas de assistência social disponíveis. A definição desses protocolos é importantes porque cabe aos órgãos federais a fiscalização e aos MPs as ações judiciais, mas são os municípios que precisam abrir vaga em abrigos e incluir essas pessoas na rede de assistência.
Na capital paulista, um projeto de lei apresentado no fim de 2022, por meio da Rede de Promoção do Trabalho Decente e da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo, pretende reforçar a política pública municipal do pós-resgate com a concessão de benefícios como a gratuidade no transporte público por seis meses.
O texto já recebeu parecer favorável nas comissões e prevê que pessoas resgatadas possam pedir o auxílio-aluguel por até 12 meses quando o município não tiver como fornecer habitação provisória para ela e para sua família.
Na Bahia, dois projetos-piloto tentam atacar a insuficiência da política pública por um outro viés. Famílias resgatadas em situação de escravidão serão assentadas em fazendas de base agroecológica (onde o cultivo orgânico e coletivo são prioridade).
Os programas já estão em execução e, segundo um dos idealizadores, o professor da Faculdade de Economia da UFBA, Vitor Filgueiras, passam no momento por questões burocráticas, mas já têm orçamento completo.
Inicialmente, 70 famílias deverão ser atendidas em duas regiões: Una e Aracatu. São pessoas resgatadas do trabalho rural escravo. A ligação com a vida no campo acaba fazendo com que muitos voltem às fazendas depois de não encontrar trabalho nas cidades.
"Você não quebra o ciclo do trabalho escravo sem fazer com que as pessoas tenham autonomia", diz o pesquisador.
Hoje eu sou valorizado, sou visto Da casa onde mora, no Ceará, João mostra para a câmera sua carteirinha do Coren (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo). "Essa é a minha profissão, olha, sou técnico de enfermagem."
Com 29 anos, João está feliz. Há seis meses, trabalha em um laboratório. O emprego, e mais do que ele, a profissão, é motivo de orgulho para o cearense. "Quando voltei [para o Ceará], não sabia o que eu queria, mas acabei gostando. Antes eu não tinha uma profissão. Hoje eu sou técnico de enfermagem. Meus colegas me elogiam", diz.
Agora, João faz planos de viajar. Uma ida à praia com os amigos é um dos desejos. Outro é voltar ao Rio de Janeiro, cidade onde viveu por quase três anos e da qual conheceu apenas os arredores do restaurante em que trabalhou, na região central.
A rotina que segue hoje em dia é muito diferente da que levava até o início de 2019, quando foi resgatado por uma operação de fiscalização. Até aquele dia, não imaginava que a situação que vivia fosse ilegal, ou mesmo que aquilo era considerado trabalho escravo. Alguns colegas diziam que "aquilo estava errado", mas João não tinha dimensão do crime do qual era vítima.
O trabalho começava às 7h seguia até 17h, de segunda a segunda. Folgas eventuais eram concedidas em apenas um período do dia, de manhã ou à tarde. Entre os colegas com quem dividia uma casa -locada pelo dono do restaurante-, ele ainda tinha o privilégio de ter o registro em carteira.
O verniz legal não se estendia aos direitos. Não recebia vale-transporte, horas extras ou descanso semanal remunerado. Também não tinha horário de almoço. No alojamento pago pelo empregador, não havia banheiro, portas e geladeira. No restaurante, fazia de tudo: atendia mesas, era caixa, preparava saladas, limpava o salão. Até cano estourado consertou.
"Agora eu tenho escala. Dá para sair, se divertir. No Rio era só trabalho, trabalho, trabalho. Eu tinha curiosidade de conhecer aquele Museu do Amanhã, o Pier Mauá", diz. João trabalhava próximo a esses importantes pontos turísticos, que também estão na zona central do Rio.
Se pudesse dar um recado a quem desconfia da legalidade de um trabalho, João diz que pediria que as pessoas denunciem. "A pessoa fica traumatizada né? Que elas possam se libertar dessa situação. Hoje eu saio, hoje eu posso sair, encontrar meus familiares. Hoje eu sou valorizado, sou visto."
Herança colonial alimentada pela pobreza Para o auditor fiscal do trabalho Lucas Reis, o trabalho escravo contemporâneo é uma espécie de continuação da escravidão colonial. "A abolição ocorreu apenas legalmente e é muito recente. O Brasil ainda não reparou 380 anos de escravidão. Há muitos resquícios desse período e a escravidão é uma delas", afirma.
A pobreza e a miséria são dois combustíveis para a exploração de trabalhadores em níveis considerados degradantes. Há um tipo de retroalimentação: na miséria, os trabalhadores ficam mais vulneráveis a aceitar trabalhos exaustivos que garantam o mínimo para a sobrevivência, e em condições sempre ruins, esses trabalhadores nunca deixam a miséria.
"É um terreno muito fértil. Às vezes a pessoa precisa se submeter para pode comer, sobreviver, morar,"
A definição de "reduzir alguém a condição análoga à de escravo" vem do artigo 149 do Código Penal. O texto legal diz que isso pode acontecer tanto no trabalho forçado quanto em jornadas exaustivas, seja porque o trabalhador foi sujeito a condições degradantes ou porque teve sua locomoção restringida pelo empregador ou preposto.
A pena prevista é de dois a oito anos de reclusão e multa. No âmbito trabalhista, as ações costumam pedir indenização por danos morais individuais, por danos coletivos e o recolhimento de todas as verbas trabalhistas.
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