BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Já se passaram 20 anos desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lançou o Fome Zero, marco inicial das políticas sociais da era petista e que prometia acabar com a insegurança alimentar no país. A melhora contínua observada desde então entrou em trajetória de reversão nos últimos anos, o que agora desafia o legado do programa e reforça a necessidade de mudanças nas políticas vigentes.

O Fome Zero foi lançado em Belém (PA), em cerimônia com Lula, e sua primeira beneficiária foi Veida Maria Monteiro, 54. "O que consigo comprar hoje é bem menos que o que conseguia nos últimos anos", diz ela à Folha.

Quando passou a receber o dinheiro, Veida disse que conseguiu comprar para a família mais alimentos, e de melhor qualidade. A casa, segundo ela, é a mesma de 20 anos atrás, mas está em melhores condições.

Veida Maria Monteiro, a primeira pessoa a receber o cartão do Fome Zero em 2003, em Belém, onde mora Naiara Jinknss/Folhapress Mulher de roupa preta se apoia em maçaneta de porta com o braço diretio e põe a mão esquerda na cintura, enquanto olha ao longe, para o lado esquerdo da foto **** "No começo, as coisas eram mais baratas. A cesta básica, por exemplo. Hoje em dia, está tudo caro. Minha filha nasceu prematura e teve falta de oxigênio. E hoje o benefício dela [o BPC, pago para pessoas com deficiência de famílias carentes] vai para gastos dela", afirma.

"Por isso [pelo BPC], não recebo mais o Bolsa Família, mas meu marido é autônomo. A gente tem comida, mas antes a gente podia comprar mais. Hoje em dia, com R$ 500, a gente não consegue passar o mês", contou Veida.

O foco inicial do Fome Zero era a transferência de renda para que as famílias comprassem alimentos, mas essa estrutura é hoje questionada pelos especialistas --que demandam um conjunto integrado de políticas.

"O que acaba com a fome é fazer programas estruturados", diz Adriana Aranha, pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo) que trabalhou na transformação do Fome Zero em Bolsa Família.

"A fome não vem sozinha. Ela vem acompanhada de outros fatores, como evasão escolar, violência doméstica, uso de drogas, moradias precárias, falta de saneamento. É preciso combater todo esse ciclo."

Com menos de um ano de programa, a equipe de Lula já havia decidido justamente que o programa precisava ser ampliado e integrado a outras medidas para que a luta contra a pobreza no Brasil gerasse mais resultados.

O modelo foi enfraquecido nos últimos anos. Uma das principais críticas de especialistas na área social é que o então presidente Jair Bolsonaro (PL), ao criar o Auxílio Brasil, transformou o Bolsa Família num programa essencialmente voltado para a transferência de renda.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, recriado por Lula, quer rever esse modelo e recriar o Bolsa Família --inspirado no modelo anterior.

O objetivo do governo é fortalecer políticas criadas no passado, como as chamadas condicionalidades --exigências feitas às famílias para que elas continuem recebendo a ajuda. Elas envolvem frequência escolar de crianças e adolescentes, além de vacinação em dia.

"Essa é uma das principais mudanças necessárias para ter um programa mais eficaz. No lado de programas de transferência de renda, a gente andou para trás em termos de desenho em relação ao Bolsa Família", afirmou o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social.

"Houve avanços no Brasil nesses 20 anos, mas em segurança alimentar houve retrocesso. Desde 2014, o Brasil vem diminuindo programas sociais. De um lado, tem a conjuntura econômica, o Brasil cresceu pouco, temos a inflação e a pandemia mais recentemente. De outro lado, também houve descuido nessa área de iniciativas de combate à segurança alimentar."

O retrocesso é visto em números. Em 2001 (mais antigo dado na série da FAO), 10,7% da população vivia em condição de desnutrição --conceito usado pela FAO (braço das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) para montar seu Mapa da Fome e que representa quando a pessoa habitualmente consome menos alimentos do que o suficiente para manter uma vida normal, ativa e saudável.

O número diminuiu sucessivamente ao longo dos anos na série da FAO até chegar a 2,5% em 2014. Depois, ficou em patamar inferior entre 2015 e 2018 (abaixo disso, os percentuais exatos nem chegam a ser considerados devido à margem de erro).

A situação se reverteu em 2019, e a série registrou um crescimento pela primeira vez em 18 anos --para 2,6% da população em situação de desnutrição. Em 2020 (mais recente dado disponível), houve nova piora, e o percentual pulou para 4%.

Dados da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) sobre os anos mais recentes, com base em outra metodologia, também apontam para a gravidade da situação.

No início do primeiro governo Lula, 9,5% da população vivia em condição de insegurança alimentar grave --que a Rede Penssan classifica como fome, pois a família declara fazer apenas uma refeição por dia ou informa ficar sem comer um dia inteiro. Essa taxa havia caído para 4,2% em 2013, segundo a entidade.

Já os números mais recentes, referentes a 2021 e 2022, apontam para 15,5% da população em insegurança alimentar grave. Isso representa cerca de 33 milhões de pessoas com fome no país que declaram não comer o suficiente no país.

Os dados da Rede Penssan têm como base um questionário com oito perguntas, que buscam verificar se os alimentos na casa terminaram antes que houvesse dinheiro para comprar mais ou se foi preciso pular alguma refeição por falta de alimentos.

Com base nas respostas, as famílias podem estar em insegurança alimentar leve, moderada ou grave --esta última indica que faltou comida na mesa.

Considerando os três graus de insegurança alimentar, a pesquisa indicou que mais da metade (58,7%) convive com o risco de não ter comida suficiente.

As estatísticas foram coletadas entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal.

A FGV também fez um estudo sobre a situação da fome no Brasil com base em informações do Gallup World Poll. De acordo com os dados, a parcela da população que declara não ter dinheiro para comprar comida passou de 20% em 2006 para 36% em 2021.

O levantamento diz que essa é a faixa da população que afirmou não ter dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses (de cada ano em que foi realizado o estudo).

A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas pela Ebia (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar), que também é utilizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Na época, o então ministro Paulo Guedes (Economia) contestou os dados. Mas pesquisas de diferentes metodologias mostram o aumento da insegurança alimentar no país.

Além das pesquisas que buscam verificar o nível de consumo de alimentos por parte da população, pesquisadores também costumam usar fatores ligados à renda para checar o tamanho do problema. Um dos métodos usados, por exemplo, é saber quanto é necessário para comprar o equivalente às calorias necessárias e, a partir daí, verificar o percentual da população abaixo dessa linha.

Lula destacou a volta do problema em seu discurso de posse, quando ressaltou a necessidade de todos os brasileiros tomarem café da manhã, almoçar e jantar.

"Ter de repetir este compromisso no dia de hoje --diante do avanço da miséria e do regresso da fome, que havíamos superado-- é o mais grave sintoma da devastação que se impôs ao país nos anos recentes", disse em 1º de janeiro de 2023.

O que é?

Fome: sensação desconfortável ou dolorosa causada pelo consumo insuficiente de calorias. Privação alimentar. No relatório da ONU sobre segurança alimentar, o termo fome é sinônimo de subalimentação crônica.

Má nutrição: condição fisiológica anormal causada pela ingestão inadequada, desequilibrada ou excessiva de macronutrientes e/ou micronutrientes. A má nutrição inclui desnutrição (desnutrição crônica e desnutrição aguda infantil e deficiências de vitaminas e minerais), bem como sobrepeso e obesidade.

Insegurança alimentar: quando as pessoas não têm acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficiente.

Insegurança alimentar grave: um nível de gravidade da insegurança alimentar em que, em algum momento do ano, as pessoas ficaram sem comida, passaram fome e, no mais extremo, ficaram sem comida por um dia ou mais. Medido com base na Escala Internacional de Insegurança Alimentar (Fies).

Subalimentação: condição na qual o consumo alimentar habitual de um indivíduo é insuficiente para fornecer a quantidade de calorias necessárias para manter uma vida normal, ativa e saudável. A prevalência de subalimentação é usada para medir a fome (indicador ODS 2.1.1).

Insegurança alimentar aguda: insegurança alimentar encontrada em uma área específica em um momento específico e de gravidade que ameaça vidas ou meios de subsistência, ou ambos, independentemente das causas, contexto ou duração.

Insegurança alimentar moderada: um nível de gravidade da insegurança alimentar em que as pessoas enfrentam incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e foram forçadas a reduzir, em alguns momentos do ano, a qualidade e/ou quantidade de alimentos que consomem devido à falta de dinheiro ou outros recursos. Refere-se à falta de acesso consistente aos alimentos, o que diminui a qualidade da dieta e interrompe os padrões normais de alimentação. Medido com base na Fies (Escala Internacional de Insegurança Alimentar).

Desnutrição: na definição da FAO (agência de agricultura e alimentos da ONU), quando o consumo alimentar habitual é insuficiente para fornecer os níveis de energia necessários para manter uma vida ativa, saudável e normal.

Mapa da Fome: ferramenta usada por agências da ONU, como a FAO e o PMA (programa mundial de alimentos), para monitoramento do acesso adequado a alimentos.

Fome Zero: programa criado no primeiro mandato de Lula e que se transformou no Bolsa Família

Fontes: Unicef; FAO, governo federal


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