MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - Apresentada em setembro do ano passado pela Comissão Europeia, a proposta de lei que tem como objetivo proteger a liberdade de imprensa e o pluralismo dos meios de comunicação em todos os 27 países da União Europeia é considerada um passo inovador na direção certa, mas, segundo profissionais envolvidos no debate, contém trechos que precisam de atenção antes que possa ser aprovada, o que ainda não tem prazo.

Chamado de Lei Europeia de Liberdade de Mídia (European Media Freedom Act, EMFA), o projeto está em tramitação no Parlamento Europeu, em fase inicial, e faz parte de um plano maior da Comissão, o braço executivo do bloco, de combater a desinformação e regular as grandes plataformas online. Estão inclusas nessa estratégia a Lei de Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês) e a Lei de Mercados Digitais (DMA), aprovadas no ano passado e em fase de implementação.

Com 28 artigos, o novo projeto reúne normas que buscam defender a independência da imprensa de interferências políticas e econômicas, tanto em órgãos públicos quanto em grupos privados. Há desde regras para que haja mais transparência na propriedade de empresas de mídia, como para que jornalistas sejam preservados de ataques do tipo spyware. Também prevê a criação de um conselho europeu formado por representantes de órgãos reguladores dos países, com o envolvimento da própria Comissão.

"Precisamos estabelecer princípios claros: nenhum jornalista deve ser espionado por causa de seu trabalho; nenhuma mídia pública deve ser transformada em canal de propaganda. É isso que propomos pela primeira vez: salvaguardas comuns para proteger a liberdade dos meios de comunicação e o pluralismo na UE", afirmou, em setembro, V?ra Jourová, vice-presidente da Comissão (Valores e Transparência). A expectativa é que a lei seja aprovada antes da próxima eleição europeia, no ano que vem.

A apresentação da proposta foi bem recebida, em geral, por entidades da sociedade civil e de profissionais que defendem a liberdade de imprensa, como o Instituto de Imprensa Internacional (IPI), a Federação Europeia de Jornalistas (EFJ) e os Repórteres sem Fronteiras. "Questões relacionadas com os meios de comunicação têm sido tradicionalmente da competência dos países. No entanto, a ameaça à liberdade é tanta, que se tornou necessária uma ação na escala da UE para proteger os valores democráticos da Europa", disseram, em nota, 20 organizações.

O comunicado acrescenta como ressalva que, para funcionar, a Lei de Liberdade de Mídia precisa fortalecer esforços para aumentar a transparência na propriedade de meios de comunicação "com regras claras em vez de recomendações" e introduzir normas que contemplem "todas as relações financeiras entre Estado e mídia".

"É um bom passo na direção certa. No entanto, existem problemas que envolvem a eficácia e estrutura da proposta. O trabalho dos legisladores acabou de começar", disse à Folha a eurodeputada alemã Petra Kammerevert, integrante do Comitê de Cultura e Educação do Parlamento, onde tramita atualmente o projeto.

Um dos pontos mais quentes do debate é a própria competência da UE para regular os meios de comunicação, uma atribuição que hoje é de cada país. Para estabelecer regras coletivas para o setor, como o DSA e o DMA, o argumento foi baseado no funcionamento do mercado interno. "A Comissão justifica a sua proposta com o mercado interno, porque essa é a única forma possível de regulamentação. Não reconhece que os meios de comunicação têm um duplo caráter: são bens econômicos e culturais. Não se pode tratar a mídia exatamente da mesma forma que outros bens comerciais", diz Kammerevert.

Para Elda Brogi, professora e coordenadora do Centro para Liberdade e Pluralismo de Mídia do European University Institute, essa questão explica a controvérsia em torno da proposta, manifestada por alguns países, como a Alemanha. "A UE não tem competência jurídica explicitamente conferida para produzir e aprovar uma lei dessa natureza, que recai sobre o pluralismo dos meios de comunicação", afirma.

Brogi acrescenta, no entanto, que a complexidade atual do setor abre essa possibilidade. "Mudaram as condições desse mercado, incluindo as estruturais. Já não é o mercado das emissoras de TV nacionais, mas é o mercado da informação, das mídias tradicionais e das novas e das plataformas online. É um mercado que está em constante evolução e que provavelmente precisa de novas regras. Nesse sentido, acho que há uma competência da UE", afirma ela, que participou, em fevereiro, de audiência pública no Parlamento sobre a proposta.

Desenhada com a intenção de combater o declínio da liberdade de imprensa e do pluralismo da mídia, situações que se tornaram crônicas em países como a Hungria, a proposta, segundo a eurodeputada, não é eficaz em reverter quadros como esse. "O maior problema é esse: eu não vejo uma única regra que seja capaz de melhorar a situação na Hungria ou na Polônia", diz Kammerevert. "A verdade é que a Comissão hesitou muito em usar outros instrumentos disponíveis para colocar a Hungria e a Polônia em seus lugares, como suspender certos direitos diante da violação de direitos fundamentais da UE."

Se aprovada a proposta, a constituição do conselho europeu, com autoridades reguladoras nacionais, significará uma nova instância de supervisão, um espaço formal para tratar de casos futuros em que a liberdade de imprensa esteja ameaçada. Por isso, afirma, será crucial que o órgão seja livre de interferência dos governos dos países e também da Comissão.

A participação da Comissão Europeia no conselho, como prevê o texto hoje, é um dos pontos principais da oposição à lei manifestada pela Associação Europeia de Publishers de Jornais (ENPA) e pela Associação Europeia de Mídia de Revistas (EMMA). "Como está, o conselho não é completamente independente da Comissão. A imprensa europeia sempre contou com autorregulação devido ao seu papel de escrutínio sobre os poderes. Defendemos que a imprensa fique isenta do escopo desse conselho", afirma Ilias Konteas, diretor-executivo das duas associações.

As entidades levantam outros problemas com o texto. O artigo 6, que trata dos deveres das empresas de conteúdo noticioso, prevê que os publishers garantam que "editores tenham liberdade para tomar decisões editoriais individuais no exercício de sua atividade profissional". Para Konteas, isso pode abrir espaço para interferências no modo interno em que os publishers administram seus negócios e conduzem a linha editorial do veículo. "O responsável moral e legal pela publicação é o publisher, o que também acaba por proteger o jornalista", afirma.

Segundo ele, temas como a concentração de mídia não precisam de nova regulação, uma vez que os mercados nacionais operam sob regras existentes de antitruste. Por outro lado, a Comissão, afirma, perdeu a oportunidade de incluir na proposta medidas que modifiquem a Lei de Serviços Digitais, que abre caminho para que grandes plataformas online, como Google e Meta, possam remover conteúdo editorial legal com base apenas em suas políticas internas, sem ordens judiciais. Segundo a proposta, em casos assim, a plataforma terá que informar o veículo sobre os motivos, antes que a remoção seja efetivada.

"Reconhecemos e apreciamos a importância que é dada à imprensa e à liberdade de mídia e o interesse das instituições europeias sobre o assunto, mas estamos preocupados que a ferramenta escolhida, a Lei Europeia de Liberdade de Mídia, apesar das boas intenções, não consiga resolver os problemas do setor", conclui Konteas.

Para a professora Brogi, a tramitação no Parlamento pode resultar em uma discussão construtiva, a partir do texto da Comissão. "O mundo da informação está mudando e essa norma é para reiterar que os meios de comunicação são importantes e para protegê-los. Pode ser melhorada, certamente não é a melhor norma, mas é o que pode ser feito considerando a premissa de que é uma norma da União Europeia."


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