SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "A primeira reunião da Executiva Nacional do PT desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi marcada por críticas às primeiras ações do atual governo", assim começava a reportagem que foi manchete da Folha de S.Paulo em 21 de janeiro de 2003.
O conflito envolvia o então responsável pela Fazenda, Antonio Palocci, e uma ala à esquerda do partido. Vinte anos depois, embate semelhante ocorreu entre a atual presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, e o ministro da pasta, Fernando Haddad, em torno da volta da cobrança de impostos federais sobre combustíveis.
Na queda de braço recente, o lado da presidente do partido argumenta que o governo não pode resolver de uma vez o problema criado por Jair Bolsonaro (PL) no ano passado, ao desonerar os combustíveis às vésperas da eleição.
Defendendo a recuperação das contas públicas, Haddad, por sua vez, acabou anunciando um retorno, embora diluído, da cobrança.
Questionado sobre o embate, o ministro minimizou a crise em entrevista ao UOL. "O importante é que ela [Gleisi] defendeu a decisão do presidente Lula. (...) É uma pessoa que tem opiniões fortes, mas que sabe que a decisão final, quem arbitra os conflitos de posições dentro do governo e fora do governo é o presidente Lula."
O dilema entre fazer ajuste nas contas públicas ou aumentar despesas na tentativa de gerar empregos e reaquecer a economia também dividia uma ala do PT e a Fazenda no primeiro mandato de Lula, há duas décadas.
Como o próprio Haddad lembrou recentemente, Palocci chegou a ser alvo de um abaixo-assinado, capitaneado por integrantes do partido. No início do primeiro governo do petista, o fogo amigo veio da chamada "ala radical do PT", que criticava a maneira como o então ministro conduzia a política econômica. O grupo também se opunha a uma reforma da Previdência.
Ainda em janeiro daquele ano, houve aumento da taxa básica de juros, de 25% para 25,5% ao ano, sinalizando a manutenção da política anterior, o que irritou os petistas mais à esquerda.
Os conflitos entre partido e governo eram encabeçados por parlamentares como a ex-senadora Heloísa Helena (AL) e os deputados federais João Batista Abreu, o Babá (PA), e Luciana Genro (RS) -grupo que não contava com o apoio da direção petista e, mais tarde, fundaria o PSOL.
Na época, a então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, disse que as ideias da esquerda petista colocariam o país na UTI. "Não temos outra linha. É o que o ministro tem dito aos seus diferentes interlocutores que se opõem a essa política. Qual é a alternativa?", questionou Marta, que defendia que o remédio receitado por Palocci, apesar de amargo, contrariava as expectativas de fuga de crédito e aumento do risco Brasil.
"A prefeita, além de reproduzir argumentos pretensamente científicos, apenas mostra que os lugares que ela frequenta a impedem de ver que o Brasil já está na UTI", rebateu a senadora Heloísa Helena à época.
Babá chegou a dizer que não confiava em Palocci "nem como médico [formação profissional do ministro]".
O então presidente do partido, José Genoino, escreveu um texto em que criticava a postura da ala mais à esquerda. Após ter sido chamado de neoliberal em uma reunião fechada com a bancada, Palocci disse ter disposição para debater com tranquilidade com a ala radical, mas que defenderia a agenda do governo.
Em meados de fevereiro, o presidente Lula disse em uma reunião com ministros que estava cada vez mais satisfeito com a atuação de Palocci. O objetivo do afago era reforçar para o mercado que o partido não faria uma ruptura abrupta na economia.
"Eu vou ser bem sincero: não conto com os comandantes do partido para enquadrar os radicais do PT. Eu conto com os radicais do PT para compreender o momento que o Brasil atravessa", disse Palocci, na tentativa de aparar as arestas com os críticos petistas.
Em um cenário de guerra dos EUA contra o Iraque, com desemprego recorde, aumento da dívida pública e alta da inflação, a impaciência dos parlamentares e conselheiros mais à esquerda no PT com Palocci só crescia.
A economista Maria da Conceição Tavares -cujas gravações de entrevistas e aulas foram resgatas pela internet nos últimos anos- denunciou na época o que chamava de continuísmo ou "malanismo" de Palocci, em referência ao seu antecessor na Fazenda, Pedro Malan.
No fim do primeiro semestre daquele ano, a discussão era se já não estava na hora de tentar um Plano B para a economia e acabar com os remédios amargos.
Enquanto isso, o governo avançava na reforma da Previdência, que tentava combater distorções do serviço público e que foi encaminhada à Câmara em agosto e aprovada pelo Senado no fim daquele ano.
"Choro, porque dediquei os melhores anos de minha vida ao PT, onde aprendi valores como a defesa dos direitos dos trabalhadores que, hoje, o governo do PT quer tratar como se tivessem sido concessões das elites ou de políticos", disse Heloísa Helena, ao se emocionar em discurso contra a reforma.
Para Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia e colunista da Folha de S.Paulo, a ala radical do partido foi além das críticas a Palocci, votando contra propostas do governo, em um momento em que o PT precisava transmitir a mensagem de que conseguiria ser governo.
"Após essa crise, ainda houve pesadas críticas do PT à política econômica, mas dentro de certos limites. A coisa só melhorou quando começaram a aparecer os bons resultados da combinação moderação macroeconômica e políticas sociais fortes", diz Barros, que também é autor da biografia "PT, uma História".
No PT da era Lula 1, o conflito terminou com a expulsão dos radicais e a vitória de Palocci -em 15 de dezembro, o Diretório Nacional do PT expulsou Heloísa Helena, Babá, Luciana Genro e João Fontes (SE), acusados de desobedecer orientações e criticar ostensivamente o governo.
Lula bancou a política econômica de Palocci até o fim. O ministro só cairia três anos mais tarde, após a quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa, que testemunhou contra ele na CPI dos Bingos.
Rocha de Barros diz acreditar que, em geral, o ministro ganha os embates com a ala política, mas a pressão contínua pode forçar o governo a adotar mais medidas compensatórias ou combinar estratégias. "No segundo mandato de Lula, por exemplo, a moderação na macroeconomia foi acompanhada de mais investimentos públicos."
Ao assumir seu terceiro mandato, o próprio presidente Lula tem repetido que não espera apenas elogios de seus aliados, mas que eles façam cobranças ao governo.
Apesar de considerar a disputa interna saudável, Rocha de Barros acrescenta que é preciso cautela. "Nas primeiras prefeituras do PT, o prefeito quase sempre saía por não aguentar a contestação do partido. No governo Dilma, o PT não bancou [o ministro da Fazenda, Joaquim Levy] e o governo caiu. No caso dos combustíveis, acho que a crítica de Gleisi foi longe demais, pareceu um ataque direto ao ministro."
Para Pedro Paulo Zahluth Bastos, economista da Unicamp, a prioridade deveria ser uma política anticíclica neste momento. "Essa é a fonte básica de tensão, que tem como pano de fundo a política de preços da Petrobras e se ela deve servir para maximizar os lucros dos acionistas ou se é hora de aumentar os investimentos."
"É diferente da época do Palocci, porque tudo indica que Haddad concentrou o ajuste em uma expectativa de elevação de receita, sem se comprometer com uma meta muito rígida. O presidente também já deixou claro que a prioridade é retomar o crescimento e o emprego."
Uma semelhança entre os dois ministros é a possibilidade de retomada forte da economia chinesa, só que não dá para esperar uma recuperação rápida e sincronizada da economia mundial. O cenário mais adverso pode ser uma fonte de tensão que poderá diminuir a sustentação de Haddad, diz Bastos. "Uma política, como a do Palocci, teria menos possibilidade de dar certo agora."
RELEMBRE CAPÍTULOS DO EMBATE ENTRE PALOCCI E RADICAIS DO PT, EM 2003
**24.jan.03**
Juro alto é remédio necessário, diz Lula
É como se nós tivéssemos um filho com febre e quiséssemos mudar de médico e de medicamento. E, entre um médico e outro, esse filho tivesse febre. Você, talvez, tivesse que dar o mesmo medicamento", justificou o presidente ao comentar a alta de juros
**1º.fev.03**
Governo tenta evitar colapso, diz Palocci
Em reunião fechada com senadores e deputados do PT, o ministro afirmou aos colegas de partido que o governo será tradicional na economia. Quando criticado pelas medidas econômicas, ele rebateu: "Se tiverem receita melhor, me passem"
**3.fev.03**
Paul Singer: Ambiente de torcida impede discussão de alternativas
Um dos fundadores do partido, economista se queixou da falta de uma discussão em profundidade sobre a política econômica. "Deve haver outras alternativas", disse, ao reconhecer que as medidas tomadas na economia repetiam a dos anos FHC
**4.fev.03**
'Serei duro com radicais', diz Palocci
Vou fazer um debate com eles [os radicais] com tranquilidade, mas vou ser duro", disse o ministro, ao apontar que pretendia mostrar que o programa do governo Lula era marcado pela moderação econômica e rejeição a mudanças abruptas
**6.ago.03**
Lula cede e Câmara aprova reforma da Previdência
Governo manda reforma que previa aposentadoria integral e a paridade (aposentados têm o mesmo reajuste dos funcionários da ativa) apenas para os atuais servidores e instituía, entre outras alterações, a contribuição previdenciária dos inativos
**13.dez.03**
Documento petista diz que rebeldes uniram-se à oposição
"Não dá para transformar críticas em oposição ao governo. Isso eu não aceito. Sou governo. Com autonomia, mas sou governo", disse o ex-presidente do PT José Genoino
**15.dez.03**
Rebeldes são expulsos do PT, encerrando guerra interna
O Diretório Nacional do PT expulsou os quatro congressistas acusados de desobedecer orientações partidárias e criticar ostensivamente o governo federal
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Haddad
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