BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirma que a regra fiscal proposta pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para substituir o teto de gastos tem tido uma boa recepção entre os agentes econômicos e que críticas ao desenho partem de "gente querendo holofote".
Embora o processo de ajuste induzido pelo arcabouço seja gradual, com perspectiva de estabilizar a dívida pública em 2026, o secretário diz à reportagem que o desenho tem potencial para tirar o fiscal de vez da lista de problemas do país.
"Uma discussão é o modelo, que é para ser perene. Se ele for perene, nós resolvemos o problema fiscal do Brasil. É tão simples quanto isso", afirma.
A regra prevê que a alta real da despesa, acima da inflação, será equivalente a 70% da variação das receitas --assegurados um piso de 0,6% e um teto de 2,5% de crescimento real dos gastos ao ano.
Haverá também uma meta de resultado primário. A promessa é que a arrecadação supere o gasto em 1% do PIB (Produto Interno Bruto) já em 2026, o que despertou dúvidas sobre a capacidade do governo de obter receitas extras para atingir esse objetivo.
Para Ceron, o novo arcabouço vai conciliar interesses da sociedade sem abrir margem para exagero ou gastança. "[A proposta] atende a todos os sonhos? Provavelmente não, mas consegue ir na direção correta de fazer essa reparação social com responsabilidade fiscal", afirma.
PERGUNTA - O que achou da recepção ao arcabouço fiscal?
ROGÉRIO CERON - Muito positiva. Tiramos duas grandes incertezas da frente. Primeiro, não vai haver um descontrole de gastos. Segundo, o governo vai crescer a sua despesa menos do que cresce a receita. Isso garante uma trajetória de médio e longo prazo de sustentabilidade da dívida. A discussão [agora] é da intensidade do movimento.
Gente querendo holofote para criticar o arcabouço e o governo não falta porque isso dá ibope, dá espaço na mídia para especialistas falarem e terem sua foto estampada como uma mensagem crítica. Mas ninguém está criticando o desenho. Discute-se a intensidade, o parâmetro ou às vezes até uma questão ideológica.
O sr. acha que essas críticas são só uma busca por holofote e bater por bater no governo? Ou elas têm fundamento?
R.C. - Não acho que sejam só bater por bater. Tem muita gente séria fazendo análise, olhando mais para discussão da intensidade. Se o número fosse mais intenso, poderia ter um resultado melhor, mas se esquece que o arcabouço tenta equilibrar uma sociedade que busca uma reparação social com responsabilidade fiscal. Não é a responsabilidade fiscal como fim, ela é um equilíbrio de uma visão de Estado brasileiro. Alguns gostariam que fosse mais rápido, outros gostariam que fosse mais lento. Essa discussão depende de qual é o interlocutor.
Dentro do PT há quem prefira um ajuste mais lento. Como convencer o próprio partido?
R.C. - [O crescimento das despesas] é suficiente para acomodar política de valorização de salário mínimo, piso de educação de saúde, algum aumento de investimento público. Você consegue equilibrar as diferentes políticas, incorporar e manter um programa como o Bolsa Família. Atende a todos os sonhos? Provavelmente não, mas consegue ir na direção correta de fazer essa reparação social com responsabilidade fiscal. Ao fazer isso, eu também atendo minimamente ao outro lado da sociedade, que são os investidores internos e externos que movimentam a economia.
Que ponderações trouxeram algum tipo de reflexão para o texto?
R.C. - Um ponto que surgiu é: entendemos a lógica do bônus de investimento se cumprir seu primário melhor, [mas] era bom ter um teto desse bônus. Imagina se o país descobre um novo pré-sal e entram R$ 200 bilhões. Faz sentido você dar um bônus de dez vezes um investimento público?
O limite seria uma proporção ou um valor nominal?
R.C. - Isso que a gente estava pensando, se coloca um valor nominal que represente uma fração do que é hoje o investimento. Por exemplo, hoje o investimento agregando Minha Casa, Minha Vida dá R$ 70 bilhões, R$ 75 bilhões. Então pode ser de até R$ 20 bilhões, R$ 25 bilhões [a mais]. Ou coloca um percentual mesmo, limitado a 25% do investimento do exercício.
De quem veio essa ponderação?
R.C. - Não vou lembrar exatamente, fiz algumas rodadas de reuniões. Isso surgiu duas vezes e não tem problema. Tenho que me esforçar para as pessoas entenderem a distinção das discussões. Uma discussão é o modelo, que é para ser perene. Se ele for perene, nós resolvemos o problema fiscal do Brasil. É tão simples quanto isso. Daqui a 10, 15 anos, não se tem mais discussão sobre fiscal, porque a gente assimilou essa cultura que a despesa tem que crescer um pouco menos do que a receita. Se conseguirmos ter isso, está resolvido. Não tem excesso de gasto, não tem um movimento brusco de redução do tamanho do Estado, tem um horizonte cada vez melhor de trajetória da dívida, está resolvido.
Acabou se dando nos últimos dias um foco muito grande na questão de incremento de receitas, se é viável ou não, mas esquecendo da regra. Se a receita não vier, a despesa cresce menos. Se ele [incremento] não for bem-sucedido ou se não estiver próximo do que falamos que é possível, talvez a dívida não se estabilize até 2026, mas não é um grande problema se estabilizar em 2028 ou 2030. Você deixa de antecipar alguns benefícios, [mas] esse ganho [do desenho] já traz muita estabilidade e previsibilidade para os agentes.
Outro ponto é a referência de receita para a alta da despesa. Vai ser a variação acumulada em 12 meses até fevereiro ou junho?
R.C. - A gente estava pensando em prever [até fevereiro] na LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias, enviada em abril], podendo atualizar [até junho] no PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual, enviado em agosto]. Alguns [disseram] 'vai dar confusão, podendo utilizar o melhor de um dos períodos'. A gente está discutindo, tende a ficar junho.
Se colocar para junho, não obriga a mandar a LDO sem ter exatidão da meta do ano?
R.C. - Esse é o ponto. A discussão é como a gente crava uma das referências. Se joga para junho, a LDO me diz pouco, ou trava tudo. Não é um arcabouço para 2024, é um arcabouço para os próximos 20 anos. Estamos fazendo a escolha para submeter ao Congresso.
O ministro anunciou nos últimos dias medidas para elevar a arrecadação em até R$ 113 bilhões. O que falta para chegar nos R$ 150 bilhões comunicados antes?
R.C. - Não precisa ser R$ 150 bilhões, depende. A grande variável é quanto a receita cresce, ela dá a intensidade desse processo de ajuste. E depende muito de como a economia vai reagir nos próximos anos. Se ela for bem, precisa de um esforço menor de coisas adicionais. Mas também não pode ficar só contando com a sorte. Se ela for mais ou menos na média, precisa de um esforço um pouco maior. Ela [receita extra] não é condição sine qua non [indispensável], o processo de ajuste continua seu curso independentemente do patamar. Ele anunciou algumas medidas que irão agora e tem outras que estão sendo avaliadas e virão no momento oportuno, se for o caso. Insisto muito, não tem nenhuma medida de aumento de tributos. É ajuste fino.
O intervalo de quanto é necessário fica em quanto?
R.C. - É algo em torno de R$ 100 bilhões. Acho que a gente vai conseguir avançar mais em algo de R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões. Neste ano, seriam R$ 50 bilhões.
Vocês falam que é preciso buscar quem não está pagando. Onde estão essas pessoas ou empresas?
R.C. - O ministro sinalizou algumas preocupações, como a questão das triangulações com paraísos fiscais. É um problema grande e crescente. Não acontecendo nada, mais e mais empresas vão se utilizando desse instrumento, que está sendo combatido no mundo todo. Ela faz uma operação simulada por um determinado lugar, mas não leva [a mercadoria] efetivamente para lá. E de lá vende para o lugar correto. Só que nesse paraíso fiscal não tem tributação sobre o lucro, ou tem um valor irrisório. Então todo o lucro é gerado naquele paraíso fiscal e não no país produtor.
[Queremos também] tentar deixar mais clara a legislação para evitar o uso indevido ou não legítimo de alguns benefícios.
Se a meta de primário for descumprida, o percentual de alta da despesa em relação à receita cai de 70% para 50%. Não é só mandar um projeto para mudar a meta e evitar a punição?
R.C. - É, mas isso vale sempre, né? Mesmo se estivesse na Constituição, sempre pode mudar. O intuito é que a regra é para não mudar. Ela está montada para ter esse curso natural, sem necessidade desse tipo de artifício.
É um risco moral do governo que quiser fazer isso?
R.C. - É. O arcabouço tem que ser aceito e blindado pela sociedade. É isso que vai garantir a perenidade dele. Se ela estiver blindada, o Congresso não aceita alterar.
Outros Poderes terão o limite de gastos nos mesmos moldes do Executivo, com ganho acima da inflação. O principal gasto deles é com pessoal. Isso não pode gerar pressão por reajustes, com repercussão sobre o próprio Executivo?
R.C. - Hoje já existe no regulamento do teto de gastos os limites individualizados [que crescem no mesmo ritmo]. É algo que já está aí, e está sendo mantido porque ele mantém todos na mesma direção.
Um texto de discussão do próprio Tesouro faz a ponderação de que, como os demais Poderes não têm políticas finalísticas, eles poderiam ter um crescimento menor do limite.
R.C. - Respeito os trabalhos técnicos do Tesouro, mas é uma opinião de mérito que foge até um pouco do escopo de atuação do Tesouro. É um texto de discussão, mas, [por mais] legítimo que seja, é uma discussão em outro nível que não no Tesouro, né? Isso [fazer tetos diferentes] cria distorções. Se [diante de] uma determinada situação ou um determinado benefício não adequado e distorcido, ao invés de discutir o benefício, você discute que a instituição tem que ser punida... Acho que não é por aí. Acho justo e democrático que os percentuais sejam iguais.
Uma série de despesas vai crescer em ritmo maior que o limite. Com o novo piso de investimentos, o que sobra como variável de ajuste?
R.C. - Tem uma série de despesas com algum tipo de correção, então vai ter que buscar aquilo que sobra. Ou pode enfrentar [mudança no ritmo de] alguma que a princípio teria tal crescimento. Vai ser escolha de cada governo.
A regra força a revisão dos gastos de custeio e, principalmente, dos maiores, como salários do funcionalismo?
R.C. - Acho que não. Se tudo caminhar razoavelmente bem e o país voltar a um crescimento médio estável, as coisas vão caminhando, o Estado vai manter o mesmo tamanho em relação ao PIB, com crescimento saudável da despesa, atendendo a políticas sociais de forma equilibrada.
Isso dispensa uma reforma administrativa?
R.C. - A reforma administrativa tem outro caráter, mais de modernização da máquina pública do que olhar para o que ela vai reduzir de custo. O ganho é garantir serviços públicos melhores, criar incentivos corretos. Não existe uma reforma administrativa em que você vai mudar o tamanho do Estado de um dia para o outro. Isso é uma ilusão.
Ao vincular despesas e receitas, o governo espera obter do Congresso maior disposição para revisar benefícios ou acabar com essas brechas?
R.C. - O arcabouço gera uma direção. Se nós queremos que seja mais célere, precisamos corrigir algumas distorções. Se a decisão da sociedade for não mexer nesse tipo de situação, significa pagar um pouco mais de juros. Temos que discutir se é razoável ou não esse tipo de prática. O Congresso representa a sociedade.
A regra assegura alta da despesa. Isso pode desincentivar a revisão de gastos públicos para evitar desperdícios ou mau uso dos recursos?
R.C. - Acredito que não. As bandas de crescimento [do gasto] não são exageradas a ponto de você gerar um grande incentivo ao descontrole.
Mas terá algum dispositivo para que a avaliação de gastos seja um princípio estável ao longo dos anos?
R.C. - Pode ter um próximo governo que não a considere tão prioritária assim. O arcabouço está mais voltado para criar um macro desenho. De forma programática, ele pode indicar a importância de ter esse tipo de política. Mas não tem capacidade de garantir a qualidade do gasto. E nenhum outro teve.
O ministro tem falado da harmonização da política monetária e fiscal. Embora tenha o teto para a alta das despesas, o arcabouço tem um viés pró-cíclico. Isso não pode atrapalhar?
R.C. - Na minha leitura, falar ele que é pró-cíclico é um equívoco. A gente tem justamente essas duas balizas [piso e teto para a alta de despesas] para evitar ser pró-cíclico. Se ela [a banda] fosse mais estreita, seria mais anticíclica, isso eu concordo. Agora, dizer que ela é pró-cíclica é equivocado e eu não tenho problema em discutir isso tecnicamente com ninguém.
Mas e a relação com a política monetária? Se a regra facilita ou não essa harmonização de que o ministro tanto fala.
R.C. - O que não pode acontecer é o fiscal estar impulsionando enquanto a monetária está restringindo. Ou o contrário. Elas precisam atingir o mesmo objetivo. Eu entendo que ela cria as condições para estarem harmonizadas, sim. Ela não permite aqueles movimentos em que o BC subia a taxa de juros para um patamar X e você vem com um fiscal muito forte, neutralizando os efeitos [da política monetária].
RAIO-X
Rogério Ceron, 42
É auditor fiscal de carreira. Comandou a SP Parcerias, órgão de concessões e PPPs (parcerias público-privadas) da Prefeitura de São Paulo. Foi secretário de Finanças do município entre 2015 e 2016, na gestão de Fernando Haddad (PT). Possui graduação e mestrado em economia pela Unicamp (Universidade de Campinas) e doutorado em administração pública pela FGV (Fundação Getulio Vargas).
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