SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A tentativa do governo Luiz Inácio Lula da Silva de aumentar o poder na Eletrobras eleva a insegurança jurídica no mercado e pode dificultar a privatização de estatais de energia elétrica e saneamento, além de aumentar a volatilidade das ações de empresas de capital misto na Bolsa de Valores, na avaliação de analistas de mercado e gestores de fundos.
Nesta sexta-feira (5), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) que declare inconstitucional parte da lei de desestatização da Eletrobras, para que a União tenha voto proporcional à sua participação societária na empresa.
A solicitação, feita pela AGU (Advocacia-Geral da União), por meio de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), tenta derrubar o trecho da lei que proíbe que acionista exerça votos em número superior a 10% da quantidade de ações. A ação da AGU afirma que a União manteve 43% das ações ordinárias da companhia.
A economista e sócia do escritório Sergio Bermudes Advogados Elena Landau lembra que, durante o debate da privatização da companhia, havia o temor de que grupos estrangeiros, especialmente chineses, adquirissem o controle. A limitação de voto foi pensada nesse contexto e incluída na lei de privatização e no estatuto da companhia para evitar essa concentração de poder.
Landau, que comandou o programa de privatizações do governo FHC e é especialista em direito societário e mercado de capitais, se opôs, na ocasição, ao modelo de privatização da Eletrobras. Defendia outros formatos. Mas afirma que o questionamento do governo não faz sentido econômico ou jurídico.
"Essa limitação acontece em todas as corporações, e é preciso ter limitação de voto para não permitir que haja uma agregação de interesses ?impedir que um grupo, por traz da maioria, faça acordos que na verdade não representam a maioria. Isso é normal", afirma ela.
"Desde a primeira ameaça [do governo, de alterar as regras da Eletrobras], conversei com todo tipo de advogado para discutir a questão. Todo mundo acha que não vinga. Vai servir apenas para ajudar a desvalorizar ainda mais a companhia."
Um gestor de fundos com participação relevante na Eletrobras. que preferiu não se identificar, concorda com essa análise. Diz que vê pouca chance de que prospere a tentativa do governo de aumentar seu poder na empresa.
Esse gestor cita que Embraer e a própria B3 estão entre outras empresas importantes na Bolsa que também contam com a mesma trava para limitar o voto por acionista. A ida do governo à Justiça poderia desencadear uma série de questionamentos, aumentando a volatilidade na Bolsa e piorando o ambiente de negócios no país, diz ele.
A leitura é que investida também teria o efeito colateral de aprofundar a percepção de risco regulatório no Brasil.
Segundo André Gordon, sócio-fundador da gestora GTI Administração de Recursos, a iniciativa do governo no caso da Eletrobras pode dificultar a evolução de processos de privatização de estatais de saneamento e energia como Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais) e Copel (Companhia Paranaense de Energia).
Tanto o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), em São Paulo, como o de Ratinho Júnior (PSD), no Paraná, e o de Romeu Zema (Novo), em Minas Gerais, já manifestaram a intenção de privatizar as empresas de saneamento de seus respectivos estados.
"Todo mundo vai querer esperar para ver qual será a jurisprudência [sobre o caso da Eletrobras]", afirma o gestor da GTI, acrescentando que os milhares de investidores que compraram ações da Eletrobras no processo de privatização o fizeram levando em consideração um cenário no qual a empresa seguiria com o capital pulverizado, sem se submeter a políticas impostas pelo governo.
Analista da Ativa Investimentos, Ilan Arbetman tem uma visão parecida. "A forma [pela qual o governo busca para aumentar a influência na Eletrobras] não é positiva para a empresa, para o mercado e para qualquer investidor que queira investir no Brasil. Isso traz insegurança jurídica", afirma.
O analista acrescenta que as discussões envolvendo eventuais privatizações das empresas de saneamento de São Paulo e Paraná poderiam replicar o modelo adotado no processo da Eletrobras. A medida do governo, portanto, tende a afetar negativamente as conversas relativas à venda dessas estatais, diz Arbetman.
O analista da Ativa diz ainda que o governo poderia buscar outros caminhos para aumentar sua influência na Eletrobras, como alegar a inconstitucionalidade da privatização no STF, propor a alteração dos votos dos acionistas em assembleia ou mesmo pagar o prêmio de 200% sobre o preço máximo das ações nos últimos 500 pregões para recomprar os papéis que foram vendidos no processo de venda da elétrica.
A forma escolhida pode ter sido considerada o caminho mais fácil pelo governo para ser bem-sucedido na empreitada, mas é ruim para a percepção dos investidores sobre o mercado brasileiro de um modo geral, diz Arbetman.
Sócio-fundador da casa de análise de investimentos Nord Research, Bruce Barbosa diz que a ação do governo relativa a Eletrobras não deve trazer impactos para ações de outras empresas do setor elétrico na Bolsa, mas pode aumentar a volatilidade para os papéis das estatais, frente ao aumento do risco de interferências.
"É péssimo para a governança e para o Brasil", afirma Barbosa. Ele diz torcer para que o Congresso barre a medida, e faz referência à recente derrota do governo na Câmara ?no início do mês, deputados derrubaram mudanças feitas pelo governo federal no Marco do Saneamento. "O mercado brasileiro inteiro está sofrendo com as decisões deste governo. Por isso que está tão barato."
As ações ordinárias da Eletrobras acumulam desvalorização de cerca de 19,4% em 2023, até 5 de maio, segundo dados da Bloomberg. O Ibovespa recua 4,2% no mesmo período. A ação do governo no STF "certamente vai continuar pesando sobre o papel ao longo do processo", diz Arbetman, da Ativa.
Como a própria ADI afirma que deve ocorrer prevenção (preferência que o tema seja analisado por juiz que já trata do tema proposto), o questionamento do governo tende a ser encaminhado para o ministro Kassio Nunes Marques, relator de duas outras ações que questionam a privatização da Eletrobras, um do Podemos e outra do PT.
Nunes foi indicado por Jair Bolsonaro (PL) e tem se posicionado a favor das teses defendidas pelo governo anterior, favorável à privatização. Outros ministros do STF também apoiam privatizações. No entanto, alguns especialistas da área jurídica lembram que podem ocorrer surpresas, uma vez que ministros da Corte têm revisto posições.
Um exemplo recente é a alteração do voto do ministro Gilmar Mendes. Ele reviu posição anterior para acompanhar o voto do ministro Luís Roberto Barroso e considerar constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletiva, de contribuições assistenciais a sindicatos.
Ainda que avalie ser remota o reversão da privatização, a própria Eletrobras já comunicou o risco ao órgão regulador do mercado de capitais dos Estados Unidos.
Neste sábado, o presidente Lula voltou a falar sobre a Eletrobras e afirmou que pretende entrar com uma ação questionando a privatização da empresa. O chefe do Executivo criticou limites criados na privatização da companhia que dificultam sua reestatização e questionou a remuneração de diretores e conselheiros da Eletrobras.
"Os diretores aumentaram seus salários de R$ 60 mil por mês para mais de R$ 360 mil por mês, e um conselheiro para fazer uma reunião ganha mais de R$ 200 mil. Não é possível num país em que 33 milhões de pessoas passam forme vivermos numa situação como essa", afirmou o presidente, em entrevista coletiva neste sábado (6), em Londres, após a coroação do rei Charles 3º.
PRIVATIZAÇÃO DA ELETROBRAS COMEÇOU NOS ANOS DE 1990 E SOFREU VÁRIOS PERCALÇOS
FHC (1995-2002): No governo FHC iniciou-se a tentativa de vender a Eletrobras para o setor privado. A medida sofreu resistência e não se concretizou, mas durante o seu mandato, o presidente privatizou quase todas as distribuidoras, entre elas, a Escelsa, distribuidora do Espírito Santo, a Light, do Rio de Janeiro, e a Gerasul, que atuava no sul do país
Lula (2003-2010): Além de colocar na gaveta o plano de privatizar a estatal, o governo PT freiou as vendas de distribuidoras, mas seguiu com leilões de transmissão e geração de energia. Entre as iniciativas que marcaram aquele momento estão o início dos leilões de energia eólica, em 2009, e o da Usina de Belo Monte, em 2010
Dilma (2011-2016): Em seis anos no poder, Dilma seguiu a cartilha adotada por Lula. Foram feitos leilões de linhas de transmissão e de hidrelétricas --como a Três Irmãos, em São Paulo
Temer (2016-2018): Dois meses após assumir a Presidência, Temer retoma as privatizações e limpa um dos maiores passivos da Eletrobras, vendendo distribuidoras estaduais deficitárias que esttava sob o guarda-chuva da Eletrobras. Foram seis ao todo
Bolsonaro (2019-2022): Além de trazer os planos de privatização da Eletrobras à baila novamente, Bolsonaro seguiu os passos de Temer nos leilões de distribuidoras, como os da CEB (Companhia Energética de Brasília) e da CEA (Companhia de Eletricidade do Amapá)
Lula (2023-): Desde a campanha eleitoral, em 2022, Lula tem falado em reverter a privatização da Eletrobras e interromper outros processos de vendas de estatais no país. Na última semana, o governo foi ao STF para aumentar o poder de voto da União na companhia de energia, e o presidente tem dito em discursos que deve agir contra a perda de controle da empresa
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