BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Os estados e municípios podem perder R$ 82 bilhões em receitas potenciais, caso o Congresso decida barrar a tentativa do Ministério da Fazenda de retomar o chamado voto de qualidade no julgamento de conflitos tributários no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).

O instrumento assegura à União o poder de decisão em caso de empate no tribunal, que desde 1931 tem composição paritária: metade dos conselheiros são indicados pelo governo federal e a outra metade por entidades que representam os contribuintes --sobretudo associações empresariais.

O número, calculado pelo IJF (Instituto Justiça Fiscal), considera um estoque atual de R$ 1,3 trilhão em disputa no Carf e a projeção do risco mínimo de perdas nesses julgamentos, dado o histórico recente de decisões do tribunal.

O impacto negativo pode ser diluído ao longo do tempo, pois alguns casos levam anos para serem julgados. A mensagem principal da entidade, no entanto, é que manter o modelo atual pode causar prejuízo também a estados e municípios, que recebem cotas de impostos arrecadados pelo governo federal --como Imposto de Renda e IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados)-- por meio dos fundos de participação.

O voto de qualidade foi derrubado pelo Legislativo em 2020, em uma decisão que já causou perdas bilionárias à Fazenda e aos governos regionais.

No mesmo ano da nova lei, 41% dos R$ 39,5 bilhões em créditos julgados pelo voto de qualidade foram anulados em favor dos contribuintes. A proporção subiu a 81% em 2021, atingindo 98% em 2022. Só no ano passado, dos R$ 25,4 bilhões julgados por desempate, R$ 24,8 bilhões foram extintos graças à nova regra.

No início de 2023, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) propôs uma MP (medida provisória) para restituir o mecanismo, mas enfrentou resistências no Congresso, e o texto acabou perdendo validade. Agora, o governo insiste na iniciativa por meio de um projeto de lei, que tramita em regime de urgência.

Em meio à discussão do texto, o IJF decidiu apontar em uma nota técnica as consequências de se manter o desenho atual do Carf, sem o voto de qualidade.

"Essa redução impactará profundamente as cidades brasileiras, principalmente os pequenos municípios e as pessoas que neles vivem", diz a entidade, que conta com a colaboração de auditores fiscais da Receita.

No documento, o IJF analisa como teriam sido os julgamentos do tribunal entre 2017 e 2019, caso o desempate a favor da Fazenda já tivesse sido revogado.

O exercício é necessário para medir o impacto sobre cada tributo, uma vez que os dados mais recentes, a partir de 2020, ainda não contam com esse detalhamento. Os parâmetros dessa simulação servem de base para a projeção para o futuro.

Segundo os cálculos do IJF, em 2017 foram julgados R$ 270 bilhões em disputas tributárias no Carf, dos quais R$ 206,7 bilhões envolviam o IR e IPI. Desses valores, R$ 179,7 bilhões em cobranças foram mantidas pelo tribunal, sendo R$ 129 bilhões nos impostos repartidos com estados e municípios.

Caso não existisse o voto de qualidade naquele ano, o levantamento indica que as decisões pró-Fazenda cairiam a quase R$ 129,4 bilhões, dos quais R$ 93,6 bilhões envolvendo disputas no IR e no IPI.

Isso significa que, dos R$ 50,44 bilhões em perdas sem o voto de qualidade naquele ano, R$ 35,45 bilhões (70,27%) se concentrariam nos tributos que compõem a base do FPE (Fundo de Participação dos Estados) e do FPM (Fundo de Participação dos Municípios).

Para calcular os eventuais prejuízos futuros, os técnicos aplicaram essa proporção sobre o que eles consideram como a perda mínima que a União terá em julgamentos do Carf envolvendo o estoque atual (R$ 252,4 bilhões, ou 18,68% do total).

Nesse cenário, as decisões desfavoráveis alcançariam R$ 177,4 bilhões em disputas envolvendo IR e IPI. Como o FPE é abastecido com 21,5% das receitas desses impostos, o impacto seria de R$ 38,15 bilhões. No FPM, que recebe 24,5%, o baque seria maior: R$ 43,9 bilhões.

Com a divulgação dos números, a expectativa da entidade é conseguir sensibilizar o Congresso Nacional a retomar o instrumento do voto de qualidade nas decisões do Carf.

Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, o relator da proposta, deputado Beto Pereira (PSDB-MS), disse que o mecanismo só tem chance de ser retomado mediante condições de negociação com os contribuintes.

Em fevereiro, a Fazenda, a Abrasca (Associação Brasileira das Companhias Abertas) e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) chegaram a selar um acordo em torno da retomada do voto de qualidade, que livrava os contribuintes de multas e dava descontos nos juros em caso de um empate no julgamento no Carf.

O argumento das empresas era de que o placar indicava a existência de controvérsia sobre a cobrança, o que deveria isentar as empresas da penalidade (multa) --uma espécie de benefício da dúvida.

Segundo o relator, a lógica de conceder algum tipo de benefício pode ser uma saída. "Pode ter um benefício para quem chegou ao voto de qualidade", afirma.

A votação do projeto de lei do Carf está programada para esta segunda-feira (3) no plenário da Câmara dos Deputados. A proposta é uma das bandeiras de Haddad para ampliar as fontes de receita do governo federal, diante das metas de reduzir o rombo nas contas este ano e zerar o déficit em 2024.


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