BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Uma ala do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vê o acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul em risco com as alterações propostas pelo Brasil para o capítulo que trata de compras governamentais.
Para o grupo ligado à área econômica, o texto compartilhado na última sexta-feira (14) com os demais países do bloco -Argentina, Paraguai e Uruguai- desconsidera argumentos técnicos, retomando pontos discutidos há mais de uma década e que enfrentam resistência dos europeus.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, há divergências internas no governo Lula sobre a necessidade de renegociar pontos específicos do tratado.
Para técnicos a par das negociações, que defendem "ajustes finos" no texto, o Brasil ameaça o desfecho das negociações ao colocar "vários elefantes dentro da mesma sala" na discussão sobre as licitações públicas.
Alguns interlocutores do governo defendem que a side letter -protocolo adicional usado nas tratativas- não pode ser instrumentalizada como argumento para minar o acordo, ainda que cada país tenha autonomia para definir suas regras nesse quesito das compras governamentais, e rebatem os termos revistos na minuta proposta pelo Brasil.
O acordo Mercosul-UE pactuado em 2019 prevê que, ao assumir compromissos em relação aos mercados de compras públicas, os dois blocos garantam maior concorrência e acesso nas licitações domésticas. Também estabelece que os fornecedores de bens e serviços de cada lado receberão "tratamento nacional" nas licitações realizadas pela contraparte.
Um dos pontos de discórdia no governo diz respeito às compras de medicamentos e insumos no setor de saúde pública. A contraproposta brasileira prevê um aumento nas exceções já previstas pelo acordo sob a argumentação da ala mais crítica de que a pandemia de Covid-19 trouxe novas perspectivas sobre o tema, em especial no que diz respeito ao suprimento de equipamentos médicos.
Há temor de que as condições acordadas no texto original engessem as compras públicas e dificultem uma reação rápida do governo em casos excepcionais.
O grupo ligado à área econômica, por sua vez, alega que o acordo Mercosul-UE, pelas regras negociadas em 2019, prevê na lista de exceções licitações realizadas por órgãos de governos estaduais e municipais, bem como licitações relativas a parcerias público-privadas envolvendo insumos da lista estratégica do SUS (Sistema Único de Saúde).
Na visão deles, é preciso haver uma diferenciação entre o que é ou não considerado estratégico. Segundo relato de interlocutores, está sendo proposta uma retirada completa do setor, nos moldes de discussões feitas em 2013, sem que nuances técnicas sejam consideradas, o que "muito provavelmente" sofreria objeção dos europeus.
Outro ponto de discordância são as cláusulas de "offsets", contrapartidas impostas a fornecedores para a compra de bens ou serviços como transferência de tecnologia. Isso vale para compras de setores como Defesa e Saúde, entre outros.
Na prática, em uma transação para a compra de equipamentos, por exemplo, a empresa estrangeira deve também fornecer tecnologia para que seja eventualmente montada uma fábrica no Brasil ou um centro de treinamento de mão de obra.
Nos termos acordados, essa prerrogativa tem um prazo de 15 anos a partir do momento em que o tratado entrará em vigor.
A ala do governo que é contra uma negociação mais ampla admite a possibilidade de discutir um prazo mais alongado, mas pondera que as novas condições estabelecidas na proposta brasileira de tornar o período ilimitado e aplicável para todos os setores vão de encontro aos interesses dos europeus, que não devem aceitar tais termos.
Os pontos pactuados em 2019 pelo então governo Jair Bolsonaro (PL) são alvo de críticas do presidente Lula. Na última quarta (12), o chefe do Executivo afirmou que o Brasil "não abre mão das compras governamentais", porque elas serão "a possibilidade de desenvolver o médio e o pequeno empreendedor" do país. "Nós vamos ter que ter uma disputa", disse.
O discurso faz eco às declarações feitas pelo mandatário em janeiro, durante visita do primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, quando afirmou que o texto do acordo precisaria passar por mudanças, citando as compras públicas como ponto de preocupação.
Segundo um levantamento do Sebrae, com base nos dados do painel de compras do governo federal, neste ano já foram aprovados mais de R$ 17,3 bilhões em negócios de micro e pequenas empresas com o setor público. O mercado de licitações públicas do governo federal é de R$ 166 bilhões, conforme estimativa de um interlocutor do Executivo.
A ala mais pragmática do governo diz que micro e pequenas empresas continuarão preservadas mesmo em um cenário de potencial aumento concorrencial entre companhias brasileiras e europeias. Além disso, contesta a argumentação de quem alega que o acordo vai de encontro à lei de licitações, sancionada em 2021.
A legislação nacional prevê que a margem de preferência para bens manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País poderá ser de até 20%. Segundo técnicos desse grupo, essa é uma possibilidade, não é algo mandatório, e precisa de regulamentação do Executivo.
Para negociadores do acordo, os termos levados pelo Brasil ao Mercosul traduzem o posicionamento e as preocupações do presidente Lula e privilegiam o desenvolvimento sustentável do país como um todo.
Já a ala mais favorável aos termos atuais do tratado diz que o capítulo de compras públicas não seria um empecilho para os planos de neoindustrialização da gestão petista e que a contraproposta brasileira não representa o posicionamento consensual de todos os ministérios da Esplanada.
"O que está sendo apresentado é um não acordo", diz uma fonte, sob condição de anonimato.
As negociações do acordo Mercosul-UE entraram informalmente na pauta da delegação brasileira em Bruxelas, onde Lula participa do encontro da Celac (Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe) com os europeus. Na segunda-feira (17), os chanceleres do Mercosul se reuniram com o comissário de Comércio da União Europeia, Valdis Dombrovskis.
"Na ocasião, as autoridades das duas regiões expressaram o elevado interesse político em trabalhar para a conclusão das negociações", disse o Ministério das Relações Exteriores em nota.
"Um acordo de associação equilibrado poderá oferecer soluções que beneficiem a todos, valer-se das complementaridades das duas regiões para impulsionar suas economias e integrar comércio e desenvolvimento sustentável de forma a gerar oportunidades econômicas, sem desrespeitar o meio ambiente", acrescentou.
Ainda segundo o Itamaraty, as equipes negociadoras dos dois blocos deverão se reunir a partir de agosto para discutir os pontos pendentes nas tratativas.
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