SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 2016, a escritora e empreendedora americana Fawn Weaver se deparou com uma reportagem sobre o homem por trás de um dos uísques mais famosos do mundo.
O homem era Nathan Green, ex-escravo que no fim da década de 1850 atuou como mentor do então adolescente Jack Daniel na arte da destilaria. Conhecido como Uncle Nearest (tio Nearest, em português), Green dominava o ofício na época, a ponto de ser considerado o primeiro "mestre destilador" do Tennessee.
Mesmo tendo sido decisivo para a criação da bebida, o nome de Green ficou esquecido. Não só na história do icônico Jack Daniel's, mas na história da destilaria americana. E foi essa lacuna que Weaver decidiu enfrentar.
Em 2017, a empreendedora fundou a Uncle Nearest Premium Whiskey, que logo se tornaria a marca de uísque com maior crescimento na história dos EUA, segundo a revista Forbes, sendo a mais premiada do país por quatro anos consecutivos: 2019, 2020, 2021 e 2022.
Em entrevista à Bloomberg no início de agosto, Weaver disse que as vendas já estão prestes a dobrar os US$ 100 milhões atingidos em 2022, e que recentemente recusou uma oferta de US$ 1 bilhão pela marca.
"Tio Nearest foi um verdadeiro pioneiro. Eu quero garantir que seu legado continue vivo", disse à agência.
Tendo vivido numa época em que a fotografia era reservada à elite e a manutenção de registros era, na melhor das hipóteses, arbitrária, muitos detalhes da vida de Green permanecem obscuros, como relata o site da Uncle Nearest.
O que se sabe é que, no século 19, ele ficou responsável por tocar a produção de uísque que existia na fazenda de um homem chamado Dan Call, pastor que possuía uma destilaria.
Green teria desenvolvido o processo que hoje define o uísque do Tennessee, que é filtrado através de carvão de bordo (maple) antes de envelhecer em barris de carvalho.
Por volta de 1860, o jovem Jasper Newton Daniel, mais conhecido como Jack, teria sido acolhido na fazenda do pastor. É lá que ele aprende a fazer uísque, com seu guia e mentor Nathan Green.
Nascido durante a escravidão, Green se torna um homem livre em 1885, após a Guerra Civil americana, e permanece trabalhando na propriedade de Dan Call.
No ano seguinte, em 1866, a produção da destilaria Jack Daniel's começa a operar. Segundo a reportagem da Bloomberg, o ex-escravo foi contratado pela empresa após a abolição, passando a ocupar o cargo de mestre destilador por anos.
Assim que tomou conhecimento da história de Nathan Green, em 2016, Fawn Weaver foi ao Tennessee visitar a fazenda onde ele produzia o uísque, e descobriu que a propriedade estava à venda.
De acordo com a matéria da Bloomberg, a empreendedora logo comprou e restaurou a fazenda, fundando a marca Uncle Nearest em 2017.
Nos primeiros anos, a empresa apenas engarrafava a bebida feita por outros destiladores.
Hoje, a companhia tem sua receita própria, que segue o processo original de produção de Green. No Brasil, a bebida pode ser encontrada na internet em sites de importadoras, a cerca de R$ 600 a garrafa.
Sites de avaliação dizem que a edição 1856 apresenta notas de baunilha, açúcar mascavo, canela, damasco e carvalho torrado.
Comandada por executivas mulheres, a Uncle Nearest é exceção em um negócio dominado por homens brancos há séculos.
Uma das lideranças, inclusive, é Victoria Eady Butler, tataraneta de Nathan Green. Ela trabalha como master blender na companhia, profissional responsável por criar misturas.
"E daí se estivermos em uma indústria que não está acostumada a nos ver ou ouvir de nós? Nós não nos importamos", disse Weaver à Bloomberg.
Intitulada "Jack Daniel's abraça um ingrediente oculto: a ajuda de um escravo", a reportagem do The New York Times em que a empreendedora descobriu Nathan Green mostrava que a companhia tinha decidido revisitar sua própria história.
Nas comemorações de 150 anos da fundação, a marca passou a contar que Jack Daniel não aprendeu a destilar com Dan Call, mas com Uncle Nearest. Agora, o trecho aparece no site da companhia.
"Acho que nunca foi uma decisão consciente [deixar os Greens fora da história da empresa]", disse Phil Epps, diretor global da marca, ao jornal na época.
Segundo a reportagem, escravidão e uísque são assuntos inseparáveis na história do sul dos Estados Unidos. Homens escravizados não apenas compunham a maior parte da força de trabalho da destilação, mas também desempenhavam papéis qualificados na fabricação.
"Da mesma forma que os autores de livros de culinária brancos muitas vezes se apropriavam das receitas de seus cozinheiros negros, os proprietários de destilarias brancas recebiam o crédito pelo uísque", diz o texto.
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