SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Aos 61 anos, o italiano Nicola Cotugno passou os últimos cinco no comando da operação brasileira do grupo de energia Enel. Ainda assim, confessa não ter aprendido meandros da língua portuguesa, conforme seu relato no dia 16 à CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Enel na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo).
Cotugno afirmou que se expressou mal em entrevista à Folha sobre o apagão que no último dia 3 atingiu 2,1 milhões de clientes da Enel em 24 cidades da região metropolitana, com duração de até uma semana para parte dos consumidores. Na entrevista, o executivo disse que a empresa não precisava se desculpar pelo ocorrido, porque foi "algo excepcional" e o "vento foi absurdo".
"Infelizmente, em italiano, a palavra 'desculpar-se' significa dar elementos para tirar a culpa de si. Então usei a palavra, como uma má tradução, para dizer 'eu não quero tirar responsabilidade de mim', mas quero dar uma visão do contexto", afirmou, durante convocação à CPI da Alesp, para em seguida desculpar-se, literalmente, com a população.
Nesta quinta-feira (23), 20 dias após o início do apagão e uma semana depois do depoimento à Alesp, Cotugno deixou a presidência da Enel no Brasil.
A empresa diz que a decisão já estava tomada desde o final de outubro mas, na visão de especialistas em gestão e comunicação ouvidos pela Folha de S.Paulo, o afastamento imediato é sinal de que falhas na comunicação corporativa durante uma crise são capazes de agravar as consequências do problema e comprometer ainda mais a reputação da companhia.
Questionada a respeito de falhas na comunicação durante o apagão, a Enel não respondeu a reportagem até a publicação deste texto.
"Comunicação não faz milagre. Se a gestão de uma empresa é ruim, a comunicação não vai melhorar a sua imagem, mas pode reduzir os danos à sua reputação, se for realizada de maneira honesta com o consumidor", diz Marcelo Rodrigues, professor do curso Gestão Estratégica de Riscos e Crise da ESPM.
Mais do que apontar culpados, como eventos climáticos, o que o público quer é uma empresa que se antecipe aos problemas e apresente soluções, diz.
Também nesta quinta-feira (23), o presidente da empresa de entretenimento T4F (Time For Fun), Serafim Abreu, publicou um vídeo nas redes sociais, seis dias depois que uma fã de Taylor Swift, Ana Clara Benevides, morreu durante o primeiro show da turnê da cantora no Rio, dia 17, organizado pela T4F.
"Enfrentamos dias de calor extremo no último final de semana no Rio de Janeiro, com uma sensação térmica altíssima e sem precedentes", afirmou Abreu no vídeo.
Realizado em meio a uma forte onda de calor em todo o Brasil, o show atraiu 60 mil fãs ao estádio Nilton Santos, o Engenhão. Sob um sol escaldante, com sensação térmica de 60º, os fãs passaram o dia na fila e foram impedidos de entrar com garrafas d'água no estádio, por protocolos de segurança. Cerca de mil desmaiaram, segundo os bombeiros. Placas de metal instaladas no piso ficaram superaquecidas e geraram queimaduras de segundo grau em alguns fãs que caíram acidentalmente sobre as instalações.
"Sim, reconhecemos que poderíamos ter tomado algumas ações alternativas, adicionais a todas as outras que fizemos, como por exemplo, criar locais de sombras nas áreas externas, alterar o horário dos shows inicialmente programados, e enfatizar mais a permissão de ingressar com copos de água descartáveis", disse o executivo. "Quero aqui pedir desculpas a todos que não tiveram a melhor experiência possível", afirmou Abreu.
"À família de Ana Clara, quero expressar os nossos mais sinceros sentimentos. Coloco aqui, agora publicamente, a nossa disposição em prestar assistência no que for necessário", disse na quinta o presidente da T4F, que considerou a morte da jovem de 23 anos uma "fatalidade".
Ana Clara foi sepultada no último dia 21 em Pedro Gomes (MS), depois que a família da jovem conseguiu dinheiro, por meio de uma vaquinha, para trazer o corpo do Rio para o Mato Grosso do Sul. A família não tinha condições financeiras para o translado.
Questionada pela Folha de S.Paulo sobre falhas na comunicação durante a crise, a T4F respondeu que "sempre contou com a consultoria dos maiores grupos de comunicação corporativa do país", que se pronunciou nos seus perfis oficiais nas redes sociais e respondeu aos veículos de imprensa.
"Usar expressões como 'caso isolado', 'fatalidade', 'excepcionalidade' é um equívoco nos momentos de crise", diz Ana Julião, gerente geral da agência de comunicação corporativa Edelman Brasil. "Para a empresa pode ter sido isso, mas para quem viveu a experiência, não", afirma. "Do ponto de vista da família da jovem que morreu no show, por exemplo, foi algo que mudou a vida de todos, para sempre."
Da mesma maneira, diz Marcelo Rodrigues, quem teve prejuízos e passou mal por falta de energia, muitas vezes por dias seguidos, se sentiu desrespeitado e enganado, porque a empresa não se preocupou em dar uma previsão honesta sobre o retorno do serviços, para que os consumidores tivessem a chance de se preparar a fim de enfrentar o caos.
"A única coisa que o consumidor queria ouvir é uma previsão da retomada do serviço. Mas na maioria dos casos ele sequer conseguiu sair do atendimento automático e registrar a sua reclamação", diz Rodrigues, diretor associado da JCM Comunicação, que tem no currículo as gestões de crise da queda do voo Air France 447 (2009) e do recall nacional do achocolatado Toddynho pela PepsiCo Brasil (2011).
"Ser honesto é sempre a melhor opção", diz ele. "Dá muito mais trabalho e é muito mais custoso para a empresa reverter uma mancha na sua reputação do que ter um gabinete de crise previamente instalado, com todos os protocolos técnicos, operacionais e de comunicação ajustados, para que a resposta seja a mais ágil e assertiva possível", afirma.
Ana Julião concorda. "Com a comunicação frenética nas redes sociais e em tempo real, nenhuma empresa pode ter a ilusão de que vai conseguir contornar uma crise sem se comunicar", diz ela. "Se a companhia não coloca a comunicação com o consumidor como prioridade, certamente alguém vai ocupar este espaço, geralmente com críticas e suposições", afirma.
A psicóloga Betania Tanure, sócia da BTA e especialista em comportamento organizacional, chama a atenção para a necessidade de a empresa ser rápida para mostrar "a sua verdade". "Timing é tudo, qualquer crise é urgente", diz.
"As dimensões de uma crise podem ser muito aceleradas pela velocidade das redes sociais. A empresa precisa mostrar rapidamente a sua verdade para não deixar que outras vozes o façam sozinhas e construam versões do ocorrido, às vezes de maneira maldosa e intencional."
Para Ana Julião, o que se observa em muitos casos é certa arrogância por parte da empresa. "Ela acha que não precisa dar uma satisfação clara ao consumidor, porque vai conseguir resolver logo o problema", diz. Alguns episódios são ainda mais tensos em multinacionais, afirma.
"A comunicação das filiais fica de certa maneira engessada, aguardando o aval da matriz para qualquer comunicado de três linhas, sem levar em conta especificidades que precisam ser detalhadas."
Betania Tanure lembra que não existe "vácuo de poder, nem de informação". "Na há espaço para silêncio. Mas também não se pode agir de maneira evasiva e imprecisa. Palavras que nada dizem e gerúndios procrastinadores são grandes algozes. Transparência é a palavra de ordem", diz ela, que também critica as "desculpas verdadeiras" no gerenciamento da crise.
"Eu tenho uma reunião muito importante às 9h, por exemplo, mas chego às 9h15 me desculpando, porque o trânsito estava ruim. É verdade que peguei trânsito, mas se a reunião é realmente importante, eu teria me preparado para chegar mais cedo e, em caso de imprevistos, ainda estaria no horário", diz ela.
O mesmo raciocínio vale para as crises corporativas: se a prestação de serviços, a entrega do produto, o atendimento ao consumidor importam para a empresa, ela deve não só estar preparada para emergências, como prevê-las, afirma. "Não funciona se colocar como vítima."
A especialista também chama a atenção para o papel do líder em meio a uma crise. "Não basta informar e se posicionar. Quem lidera crise precisa dialogar com a sociedade, abrir escuta e conversa. Não pode ser engolido pelo fluxo", diz.
"Mais que proteger o valor da organização, ele precisa pensar em gerar valor social. Se questionar sobre o que poderia surpreender a sociedade para além do que está previsto em lei", afirma.
A julgar pelas queixas envolvendo Enel e T4F, a prestação de serviços básicos deixou a desejar. No Procon-SP, desde a privatização, quando assumiu as operações da Eletropaulo em 2018, até 2022, a Enel passou da 10ª para a 2ª posição entre as mais reclamadas no estado (tendo ocupado por dois anos a 1ª posição). O seu índice de resolução de queixas está em 15%.
Na T4F, o índice de resolução de queixas é maior (38%), mas diminuiu em relação a 2021 (40%).
Já no principal site de reclamações do país, o Reclame Aqui, a Enel ocupa o status de empresa "não recomendada", por responder menos da metade das reclamações dos clientes este ano.
No Reclame Aqui, a nota da T4F está em 5,9 (em uma escala de 0 a 10) e o atendimento da empresa é classificado como "ruim". Entre 2021 e 2022, o número de queixas quase dobrou.
Um ex-executivo do setor aéreo que esteve à frente do gerenciamento de crise em meio a um dos maiores acidentes da aviação civil no país falou à Folha em condição de anonimato.
Segundo ele, qualquer empresa que atenda o grande público precisa ter um gabinete de crise formado com especialistas de diferentes setores e a participação relevante da equipe de comunicação. Só assim é possível dar uma resposta ágil a demandas inesperadas, afirma.
Ao mesmo tempo, é importante que parte da equipe se concentre nas operações do dia a dia, para garantir a continuidade do atendimento. Uma empresa precisa da sua reputação para continuar existindo e tomar as iniciativas certas em comunicação é fundamental neste processo, diz.
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