BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O Tesouro Nacional, órgão que faz a gestão das contas públicas federais, foi ignorado na elaboração da MP (medida provisória) que autorizou um aporte de até R$ 20 bilhões em um fundo privado para bancar a bolsa de incentivo à permanência de alunos no ensino médio.
Documento obtido pela reportagem por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação) mostra que a consulta sobre o conteúdo da política foi enviada para análise dos técnicos em 27 de novembro de 2023, mesmo dia da assinatura da MP.
Em despacho, a secretária-adjunta do Tesouro Nacional, Viviane Varga, afirma que "não houve tempo hábil para a manifestação" do órgão.
O ofício com a resposta foi emitido em 1º de dezembro, com o texto já em vigor. A MP foi assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Camilo Santana (Educação).
A SOF (Secretaria de Orçamento Federal), ligada ao Ministério do Planejamento, nem sequer foi procurada.
Em resposta à reportagem, também por meio da LAI, o órgão afirmou que a medida não tramitou na secretaria, "motivo pelo qual não foi produzida documentação por esta área técnica para subsidiar a formulação da referida MP".
Os registros evidenciam a ausência de parecer técnico dos órgãos responsáveis pelas despesas públicas a uma medida que permite um gasto novo de até R$ 20 bilhões ?o dobro do que foi destinado ao programa habitacional Minha Casa, Minha Vida em 2023 (R$ 9,3 bilhões).
A política foi considerada positiva por especialistas, para quem é importante atacar a evasão escolar mais pronunciada entre adolescentes no ensino médio, mas gerou preocupações fiscais.
A primeira versão da MP permitia a integralização dos valores no fundo com recursos do Orçamento, ações de empresas estatais federais ou empresas nas quais a União tivesse participação minoritária.
A proposta gerou ruído dentro do governo e no mercado, pois poderia abrir brechas para despesas fora do Orçamento e para erosão das regras fiscais. Após negociações com o Congresso, houve acordo para eliminar a possibilidade de uso das ações de estatais.
Uma segunda preocupação surgiu com a articulação bem-sucedida do governo para permitir um primeiro aporte fora do limite de gastos vigente em 2023. O Legislativo deu aval à despesa extra de até R$ 6 bilhões, que, num contexto de déficit fiscal, significa aumento da dívida pública.
Com o aval dos congressistas, o repasse foi efetivado após portaria do Ministério da Fazenda de 27 de dezembro de 2023. A operação foi vista como uma espécie de contabilidade criativa, pois propiciou a antecipação de gastos referentes a 2024, reduzindo a pressão sobre o Orçamento deste ano.
Na época da negociação, membros do governo reconheceram a conveniência de usar o espaço na meta fiscal de 2023 para antecipar um gasto que, mantido em 2024, colocaria pressão sobre o objetivo de reequilíbrio fiscal do ministro Fernando Haddad (Fazenda).
Em geral, medidas que resultem em aumento de gastos passam pela análise do Tesouro Nacional ou da SOF para que as áreas elaborem subsídios técnicos sobre os impactos da política nas despesas federais, no endividamento público e na gestão fiscal como um todo.
Algo semelhante ocorre na elaboração de medidas que resultem em renúncia fiscal, que precisam passar pela avaliação da Receita Federal, órgão responsável pela arrecadação.
Por isso, a falta de uma análise mais aprofundada da medida do ensino médio pelo Tesouro e pela SOF é vista nos bastidores como problemática e vai na contramão de bandeiras que o próprio governo tem defendido.
O Ministério do Planejamento, sob o comando de Simone Tebet, deseja implementar uma lógica de médio prazo ao Orçamento Federal, evidenciando os efeitos futuros das decisões tomadas hoje.
No caso do fundo para bancar as bolsas do ensino médio, estão previstos para 2025 e 2026 novos aportes de aproximadamente R$ 7 bilhões em cada ano.
O repasse deve ocupar espaço no Orçamento e no limite do novo arcabouço fiscal. Mesmo assim, a política não passou pelo crivo das áreas que precisarão lidar com as consequências dessa decisão.
Na resposta fornecida via LAI, o Planejamento ressaltou que a própria LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2023 exige que os atos que criam ou ampliam despesa obrigatória de caráter continuado sejam encaminhados previamente a órgãos de governo para manifestação sobre a compatibilidade e adequação orçamentária e financeira.
Como a lei foi aprovada em 2022, ainda sob a configuração do governo Jair Bolsonaro (PL), o órgão responsável listado é o Ministério da Economia. Técnicos entendem que, sob a nova organização da Esplanada, a análise caberia à Fazenda e ao Planejamento ?mais especificamente, ao Tesouro e à SOF.
O Planejamento, porém, nem sequer assinou a MP, embora a ministra Simone Tebet tenha colocado a bolsa para o ensino médio como uma de suas bandeiras durante a campanha presidencial e, posteriormente, ao negociar apoio à chapa de Lula.
No Ministério da Fazenda, outras três áreas deram parecer técnico à MP do ensino médio: PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), órgão jurídico da pasta, SPE (Secretaria de Política Econômica) e SRE (Secretaria de Reformas Econômicas).
Em parecer elaborado em um espaço de quatro horas, a SPE deu manifestação favorável quanto ao mérito da proposta, mas sugeriu consultar Tesouro e SOF quanto à análise do impacto financeiro e orçamentário da medida.
A PGFN registrou em seu parecer que "o prazo concedido para análise jurídica, de apenas um dia, prejudicou o exame adequado da matéria", mas também foi favorável.
O órgão jurídico adotou o entendimento de que a MP "tão somente" autorizaria o aporte de até R$ 20 bilhões, mas a decisão de executá-lo ocorreria em um segundo momento, sendo "ausente o aumento de despesa nesta etapa de criação do programa".
A SRE deu parecer favorável, mas pediu ajustes na redação para prever que "a regulamentação dos valores, formas de pagamento e critérios de operacionalização e utilização da poupança será editada por ato conjunto dos ministérios da Educação e da Fazenda".
Como mostrou a Folha, a fragmentação das decisões fiscais tem sido apontada por especialistas como um desafio relevante para o governo nos próximos meses.
O mesmo governo que busca reequilibrar as contas anuncia um programa de bolsas para alunos do ensino médio (com um primeiro aporte fora do limite de gastos), acelera as concessões de benefícios previdenciários e concede um incentivo tributário para empresas adquirirem novas máquinas e equipamentos.
"Gastos importantes estão sendo decididos em instâncias muito diferentes", alertou o economista Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas). Para ele, isso dificulta a boa gestão fiscal.
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