SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Três déficits hoje ameaçam a economia global: déficit de crescimento econômico, de confiança dentro dos países e entre países e de esperança em um futuro melhor -sobretudo entre os mais jovens.

É essa a avaliação que Rebeca Grynspan, secretária-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) fez em entrevista à Folha de S.paulo na semana passada em São Paulo, após o encontro de ministros das finanças e chefes de bancos centrais do G20.

Ela defende que a competição entre China e Estados Unidos pode ser saudável, mas afirma que mesmo na Guerra Fria havia cooperação.

Para Grynspan, um mundo descentralizado pode ser uma boa oportunidade para países em desenvolvimento se inserirem no comércio global, mas é preciso lutar contra a fragmentação geoeconômica -movimento contrário à globalização em que países se fecham, por vezes em decorrência de guerras e disputas ideológicas, impondo barreiras protecionistas.

Ex-vice-presidente da Costa Rica, ela defende que bancos de desenvolvimento devem ampliar incentivos para o setor privado e investir na transição energética em países pobres, onde o custo do financiamento pode ser oito vezes maior do que nas nações ricas.

 Descentralização e fragmentação econômica

Em um mundo multipolar, há uma descentralização do poder econômico que é boa para os países em desenvolvimento. É uma oportunidade, porque descentraliza os fluxos de comércio e permite haver mais inclusão.

Mas a descentralização requer mais coordenação, não menos. Se não houver coordenação, pode haver fragmentação, e há forças nessa direção. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a fragmentação do comércio poderia custar ao mundo 7% do PIB. Isso são duas pandemias, para se ter uma ideia.

ÓRGÃOS MUTILATERAIS

Se não houver Organização Mundial do Comércio, voltaremos à lei da selva. Os países com poder imporão suas regras sobre os países pequenos e médios, que são a maioria do mundo e seriam afetados pelo protecionismo.

Queremos um mundo baseado em regras acordadas, não um mundo baseado apenas em um jogo puro de poder e que resulta em imposição.

Se quisermos evitar uma fragmentação financeira, precisamos ter uma governança mais inclusiva no FMI e no Banco Mundial.

Quando esses órgãos foram criados, a maioria dos países africanos não eram independentes. Naquela época, havia 12 assentos no conselho [desses órgãos] representando 44 países. Agora, há 25 assentos representando 190 países. Se a proporção tivesse sido mantida, teríamos que ter 52 lugares --não estou dizendo que esse é o número correto, mas estamos aquém na representatividade.

Pelo menos é preciso iniciar uma conversa [sobre reformas]. Toda jornada longa começa com o primeiro passo.

No Conselho de Segurança também, não tem nenhum assento para a África ou América Latina, por exemplo. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, levantou essa discussão sobre a governança das instituições internacionais precisamente para evitar a fragmentação.

CHINA X EUA

China e Estados Unidos não precisam concordar em tudo. Que haja uma competição saudável, mas não podemos ter as duas maiores economias do mundo sem coordenação, porque isso afeta todos os outros. Mesmo nos períodos da Guerra Fria havia cooperação.

Comércio marítimo

Hoje, questões de guerras afetam o mar Negro e o mar Vermelho. E o canal do Panamá é afetado pela seca, pelas mudanças climáticas. São três artérias fundamentais para o comércio.

Lembremos, 80% do comércio é marítimo. Já estamos vendo as consequências do aumento nos custos, [fretes] levando muito mais dias e [gerando] muito mais emissões.

Por um tempo, o mundo deu como certa a normalidade da logística para o comércio. A partir da pandemia, isso começou a ser um problema, com interrupção de portos.

Depois isso continuou com a Guerra da Ucrânia e agora em Gaza. Não teremos um comércio mundial saudável e dinâmico se as interrupções logísticas continuarem nesse curso.

DÉFICITS

O mundo hoje sofre três déficits. Primeiro, um déficit de crescimento, porque o comércio e o investimento estão crescendo pouco, é preciso que sejam mais dinâmicos para os países voltarem a crescer.

O segundo, um déficit de confiança. Há muita desconfiança dentro dos países e entre países, isso evita que haja mais cooperação.

O terceiro é o déficit de esperança. Embora a situação hoje em dia seja difícil, se tivermos esperança nos moveremos em uma direção construtiva. Se não, os jovens, especialmente, se moverão em direções ainda mais conflituosas e tornarão menos estáveis a democracia em nossos países.

TRANSIÇÃO ENERGÉTICA

Parte do problema da mudança climática são os recursos necessários para investir.

De acordo com a UNCTAD, dos US$ 4 trilhões necessários anualmente para o mundo atingir os objetivos do desenvolvimento sustentável, US$ 2,4 trilhões são para a transição energética. É muito difícil para os países fazerem essa transição sem financiamento.

FONTES DE FINANCIAMENTO PARA A TRANSIÇÃO

Precisamos de recursos públicos e que os bancos multilaterais de desenvolvimento atraiam o setor privado. Quando o financiamento é tripartite, entre governo, bancos de desenvolvimento e setor privado, o custo do capital diminui 40%.

Os países em desenvolvimento têm o problema de que, primeiro, o dinheiro não chega, mas, quando chega, o custo é muito alto.

A África paga oito vezes mais do que a Alemanha e quatro vezes mais do que os Estados Unidos [para tomar empréstimos]. Precisamos da escala necessária para fazer a transição e precisamos de condições de longo prazo e acessíveis.

[Os bancos de desenvolvimento] terão de criar fórmulas para diminuir os riscos do setor privado para a transição energética no mundo em desenvolvimento. De todo o investimento estrangeiro em energias renováveis no mundo, a África recebe apenas 2%. Como vão fazer a transição? A matemática não fecha.

É preciso ainda buscar um acordo para a reestruturação da dívida dos 52 países que estão em default ou prestes a isso. Precisaremos de uma estabilidade macroeconômica muito maior.

Defendemos uma rede de segurança financeira porque muitos países, quando enfrentam algum problema de liquidez, talvez de curto prazo, logo entram em solvência.

IMPOSTO SOBRE SUPER-RICOS

Eu trabalhei no Ministério da Fazenda do meu país, sei o quão difícil é cobrar impostos. Mas uma das dificuldades é a percepção dos cidadãos de que o sistema é injusto. Você está menos disposto a pagar impostos se sente que as pessoas que têm mais do que você não pagam.

A justiça tributária é muito importante para um sistema saudável. Concordo que os impostos devem ser progressivos.

Hoje em dia, há muitas maneiras para que as pessoas com capital móvel não paguem impostos, o que faz com que haja uma maior desigualdade e afeta a moral de todo o sistema. Deve haver acordos internacionais que evitem essas brechas e espaços de evasão legal.

Estamos em um mundo de grande concentração. Veja o mundo digital, temos quatro ou cinco plataformas no mundo que controlam 70% de todo o mercado de negócios digitais e que têm um poder enorme.

Nenhum país poderá estabelecer um imposto sozinho. Note que até a Europa teve enormes problemas. O que podemos esperar nós? Deve haver um acordo internacional.


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