SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Maria José Vieira sabe que a expressão de desgaste é perceptível. Tanto que não se surpreende com a pergunta sobe isso.

Sim, está muito cansada.

"Sabe todas as aquelas coisas que você imagina sobre um clube de futebol? Então, desimagine agora. Aqui não tem nada disso", afirma.

Há seis anos, ela é presidente do Atlético Cearense, equipe que no último sábado (13) foi rebaixada para a Série D do Campeonato Brasileiro. Maria era a única mandatária de um clube da Série C. Vale o mesmo entre as agremiações de futebol profissional no Ceará.

O Atlético teve de disputar a terceira divisão nacional sem dinheiro, arrecadação, torcida ou patrocinadores. O único investidor é Ariclenes da Silva Ferreira, 36, o Ari, jogador que passou 12 anos no futebol europeu, entre Suécia e Rússia. Ele é dono, mantenedor e atacante do elenco. Assim como os outros, está sem receber salários.

Ari colocou alguns imóveis à venda para saldar dívidas feitas pelo clube que nasceu como Uniclinic em 1997, foi arrendado por ele em 2017 e transformado em Atlético Cearense.

"Eu me desfaço de alguns bens não por vaidade, mas por querer manter tudo funcionando. Eu não deixo de acreditar porque vejo este projeto com um potencial muito grande. Até agora foi um investimento alto. Acredito que esteja na casa dos R$ 30 milhões", estima.

O jogo do último sábado foi o último em 2022. Há a Taça Fares Lopes no segundo semestre, torneio estadual que oferece vaga para a Copa do Brasil --o campeonato mais lucrativo para as equipes nacionais, com verba superior a R$ 500 mil apenas pela participação na primeira fase. O Atlético não tem dinheiro para disputá-la.

O time entrou em campo para enfrentar o Confiança, no Sergipe, pela última rodada da Série C, precisando vencer para, a depender do resultado do Altos, do Piauí, evitar a queda. Perdeu por 1 a 0. Pode ter sido também a derradeira partida de Maria como presidente. Porque, como ela repete, está cansada.

"A primeira coisa que vou fazer é sair de férias, algo que não tenho há seis anos. Preciso descansar. Não sei [se vai continuar]. Preciso pensar. Eu não sou mais apaixonada. Ser uma mulher no futebol e ser mandatária quebra muito esse romantismo. Vêm as contas, vêm as disparidades, vêm as desigualdades, vêm as preocupações. Isso esfria qualquer paixão", constata.

A própria trajetória dela no mundo da bola é pouco usual para alguém como ela, que, para utilizar uma expressão familiar, carrega uma salada de frutas curricular.

"O futebol me chamou porque gosto muito de desafio e pesquisa, de encontrar perguntas a ser respondidas. E, se uma mulher poderia estar à frente de um clube, se poderia ser vista como gestora, é uma grande pergunta."

É enorme questão, mas que ela jamais pensou em se fazer. Formada em agropecuária, pedagoga, especializada em educação comunitária e saúde, pós-graduada em psicopedagogia e com MBA em gestão ambiental, Maria Vieira não corresponde às características normais da cartolagem.

Nem no perfil, nem no discurso. Não é qualquer presidente de clube que estudou latim.

"Aprendi poucas coisas, mas a que mais me marcou foi a frase de Horácio [poeta lírico e satírico romano]: 'feliz aquele que conhece a causa das coisas'."

Disputar a Série C deste ano foi possível apenas porque ela foi à CBF (Confederação Brasileira de Futebol), no Rio de Janeiro, pedir ajuda ao presidente da entidade, Ednaldo Rodrigues. As viagens foram insanas, afirma. A confederação fornece as passagens aéreas e hospedagens, mas para jogos em Pelotas (contra o Brasil) ou Porto Alegre (diante do São José) os jogadores não tinham agasalhos bons o bastante para enfrentar o frio do Sul do país. Os quartos dos hotéis não tinham aquecedores.

"A fórmula deste ano [da Série C] foi um vendaval. Um dia estava 4ºC no Rio Grande do Sul. Depois enfrentávamos 40ºC no Piauí. Ou a gente comprava casacos ou comia", diz Maria.

Ela às vezes tenta entender como tudo começou. Foi convidada apenas para escrever um livro. Seria a biografia de Ari, que havia se tornado dono do Atlético Cearense pouco antes. Ele decidiu convidá-la para ajudá-lo e comandar a agremiação. Como é "feliz aquele que conhece a causa das coisas", resolveu aceitar.

Ari é naturalizado russo e foi convocado para a seleção local. Foi o primeiro negro a representar a Rússia. É casado com uma russa. Enquanto ele estava na Europa, o Atlético conseguiu caminhar com dificuldade, mas caminhava. Havia algum dinheiro. Quando decidiu voltar para o Brasil, no ano passado, tudo ficou muito difícil.

Maria resolveu sair a campo em busca de outros investidores e patrocínios. Foi quando percebeu o peso de ser mulher no futebol.

"A gente nunca conta com um dia tranquilo. E isso não é fácil depois de seis anos. Temos de quebrar a hipocrisia de que o governo do estado ajuda o futebol. Ajuda clube que tem torcida e tem voto. Nós não temos votos. É muito difícil ver que os investidores não acreditam no trabalho de uma mulher. Perguntam: quem é que está lá [no Atlético], quem manda? O que eles têm aqui sou eu. Você percebe que as pessoas não julgam a competência, julgam o gênero", desabafa com o tom, mais uma vez, cansado.

Ari não fala sobre o futuro do clube sob o comando ou não de Maria José Vieira. Diz ser muito grato por tudo o que ela fez e que eles têm "profunda" relação de amizade e confiança.

"É uma pessoa que me dá muita segurança, principalmente na parte financeira."

Mas todo esse trabalho tem um preço. Para a dirigente, não só físico, mas emocional. E ser presidente de um clube cearense na Série C foi um desgaste enorme.

"Sou uma mulher em um time pequeno de futebol. É difícil compreender. O coração dos outros é terra em que ninguém anda."


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