SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Vinicius Junior nasceu em julho de 2000. Quatro meses antes, uma multidão de verde e branco sambava, cantando: "Morre dom Sebastião lá em Quibir, o domínio é espanhol, espanhol!".

No Qatar, enquanto foi possível, Vini bailou. E os portugueses, agora, preparam-se para novo duelo com os marroquinos, esperando resultado diferente do registrado "lá em Quibir".

Se o conceito "não é só futebol" é repetido com alguma frequência no esporte mais popular -para atestar que a humanidade dentro do jogo e a seu redor pode até deixá-lo em segundo plano-, isso fica ainda mais evidente na Copa do Mundo. Um evento que reúne múltiplas culturas, nações amigas e outras nem tanto, acompanhado também por quem geralmente não se importa com a bola. Tem até futebol.

Por isso, os movimentos de Vinicius Junior em campo -ou na churrascaria- não eram apenas os de um jogador. Podem ser vistos como toda a expressão de um povo. Daí haver tanta discussão em torno da ginga do habilidoso menino de São Gonçalo, que balança o corpo na frente dos zagueiros para iludi-los, depois balança o corpo na celebração da bola na rede para provocá-los. É desrespeito?

Também não é só futebol o Marrocos x Portugal deste sábado (10), pelas quartas de final do Mundial. O encontro esportivo entre as nações, geograficamente próximas, evocou velhas batalhas, como a de Alcácer-Quibir -onde dom Sebastião se deu mal, em 1578, revés lembrado pelo Camisa Verde e Branco 422 anos depois.

Sebastião era o jovem rei de Portugal que -como se relatou diversas vezes nos últimos dias, por causa de um jogo de futebol- comandou uma tresloucada cruzada no norte da África, tentando expandir os territórios de seu reino e os do cristianismo.

Perdeu.

A derrota teve consequências fundas -até no fundo do mar, pelo que consta- na história do Brasil, então colônia portuguesa. Abatido Sebastião em Quibir, Portugal ficou eventualmente sem rei e acabou sendo dominado pela Espanha. O que fez o próprio Brasil espanhol.

No período da eufemística "União Ibérica", que durou até 1640, o Brasil assumiu um papel geopolítico mais relevante e ampliou seu território -afinal, se era "tudo nosso", os limites da América do Sul estabelecidos entre portugueses e espanhóis não precisavam ser respeitados pelos bandeirantes. Já Portugal ficou órfão, aguardando a volta do rei para recuperar sua soberania.

Ela foi readquirida, sem Sebastião, pelo que viria a ser a dinastia de Bragança. Mas o Brasil gosta de receber mitos, ressignificá-los e chamá-los de seus. Dom Sebastião deixou de ser um mito prioritário para Portugal, novamente independente. E ganhou novas cores em além-mar, onde até hoje exerce notável e inegável influência cultural.

As (só relativamente) obscuras circunstâncias da morte do rei autorizaram a leitura de que ele estava em algum lugar oculto. Primeiro, fisicamente. Depois, de maneira mais espiritual. Não surpreende o local em que achou morada.

"Se Sebastião não morre e tampouco retorna a Portugal, a única explicação possível é que tenha mesmo se encantado na África, chegando ao Brasil, quem sabe, infiltrado em um navio negreiro. O rei se sincretiza na cultura hibridizada da colônia, para ganhar novos mundos, garantir sua imortalidade e lutar em batalhas outras", descreve a pesquisadora Lívia Penedo Jacob, no artigo "Dom Sebastião, o rei do Brasil", de 2021.

O que é Sebastião no Brasil não cabe neste texto. O sebastianismo -ou seja, a espera pelo retorno do rei encantado- percorre a história do país de maneira tão ampla que tem papel verdadeiramente relevante em movimentos como o de Canudos, do sebastianista Antônio Conselheiro. E também ajudou a eleger Jair Bolsonaro.

São incontáveis as manifestações populares brasileiras que têm ligação umbilical com dom Sebastião. O Boi-Bumbá, por exemplo, tem muito a ver com o encantado, com o encoberto. Algumas tragédias, como o massacre da Pedra Bonita, em Pernambuco, no século 19, são mais ou menos conectadas com a espera pelo salvador perdido em Quibir.

Uma mistura irresistível para as escolas de samba e seus carnavalescos.

Impressiona a recorrência com que dom Sebastião apareceu na passarela, mesmo antes de haver a atual e mais famosa passarela. Em 1974 -portanto dez anos antes da inauguração do sambódromo da avenida Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro-, passou pela avenida Antônio Carlos uma alegoria com enorme touro, deixando no asfalto a assinatura de Joãosinho Trinta.

No texto "Salgueiro deslumbrou", o jornal Folha de S.Paulo relatou vários destaques no desfile da escola, que seria a campeã. "Não ficaram para trás os carros alegóricos. Um dos mais causaram sensação foi um gigante touro negro coroado, que, nas lendas pretas do Maranhão, é a reencarnação do rei de Portugal, D. Sebastião, morto na batalhe de Alcácer-Quibir, pelos mouros", descreveu o jornal, na edição de 26 de fevereiro.

De lá para cá, houve muitas reaparições. Em alguns casos, como no Salgueiro de 1974, Sebastião era parte de um enredo. Em outros, era o próprio enredo.

Foi assim em São Paulo, em 1999, na campeã Gaviões da Fiel. "A sua espada se levanta contra o mal", cantaram os alvinegros, comparando sua determinação à do rei inconsequente: "Sou gavião, tenho garra, vou à luta, conquistar meu ideal".

Assinado por Roberto Szaniecki, o desfile -que se iniciava em um duelo de sete contra sete na comissão de frente, mouros x cristãos (com Alexandre Frota, ele, logo atrás, de prontidão)- era uma tentativa ótima e quase inútil de resumir o sebastianismo.

"A busca pelo mito continua, e se espalhou pelo Nordeste do Brasil. Canudos, serra do Rodeador. Pedra Bonita, quanto sofrimento e dor! Praia dos Lençóis, no Maranhão, vem reviver a lenda da ressurreição. Desde o limiar da nossa história, o sacrifício do touro se fez tradição. E, hoje, sob o céu iluminado, brilha a estrela do touro negro encantado."

Naquela que provavelmente é a mais difundida lenda em torno de dom Sebastião, consta que ele tenha encontrado abrigo no Maranhão, em forma de um touro negro coroado que aparece em noite de lua cheia. Se o touro tiver a estrela que exibe na testa perfurada por uma espada, voltará a tomar a forma do rei morto aos 24 anos. E seu exército emergirá das águas dos lençóis maranhenses.

"No fundo do mar, tem um castelo que é do rei Sebastião. Lá que é bom!", cantou Jamelão, com sua voz potente, no desfile da Mangueira de 1996, assinado por Oswaldo Jardim. "Deite numa rede de algodão e adormeça nas crenças do Maranhão."

Em 2008, foi a vez de a Mocidade se jogar em uma versão tropical da profecia do quinto império. Se o padre Antônio Vieira acreditava que Portugal seria o quinto e último grande império, sucessor de assírios, persas, gregos e romanos, o carnavalesco Cid Carvalho perguntou: por que não no Brasil, sob a regência de dom Sebastião?

"Nas terras tropicais do meu Brasil -a herança, a dor-, o mito ressurgiu", cantou o povo de Padre Miguel, quando a palavra mito não causava tanta discórdia. O desfile relatava toda a trajetória de Sebastião, festejado já no nascimento, como "o rei desejado", nome do primeiro carro alegórico. O ápice era a oitava alegoria: "O Quinto Império do Brasil - o Reino de dom Sebastião".

Em uma de suas mais recentes aparições na Sapucaí, Sebastião ganhou nova tarefa: salvar um xará, São Sebastião do Rio de Janeiro. Coube ao Paraíso do Tuiuti, em 2020, no enredo "O Santo e o Rei: Encantarias de Sebastião", promover o encontro.

O santo flechado -padroeiro do Rio e do próprio Tuiuti- e o rei foram saudados na apresentação idealizada por João Vitor Araújo. Da qual brotou "o verdadeiro rei". "É o povo, senhor de si, enfim desencantado. Que, na bravura do rei, por ele mesmo despertado, arrancará as flechas do peito do padroeiro", descreveu o carnavalesco, no texto que orientou o desfile.

Há muitos outros exemplos. Quando não está nos lençóis maranhenses, dom Sebastião está na avenida.

"De fato, é muito interessante essa relação que as escolas de samba construíram com o mito do sebastianismo", diz à reportagem Fábio Fabato, coautor de "Pra Tudo Começar na Quinta-Feira - o Enredo dos Enredos".

Para o escritor, que ajudou a desenvolver enredos recentes da Mocidade, a riqueza de referências ligadas ao rei encoberto é irresistível a quem faz carnaval.

"As escolas de samba são uma derivação de várias influências. Há as procissões portuguesas católicas, uma certa aura francesa, também italiana, com a Commedia dell'Arte, e os batuques africanos. Então, é uma grande mistura de formações que desemboca no desfile de uma escola de samba. É uma grande parada católica com saberes africanos. E a lenda do sebastianismo tem todos esses cruzamentos de referências portuguesa, africana, mourárabe. Quer dizer, você tem todas as influências que formam de certo modo o carnaval carioca condensadas numa lenda só", afirma.

Além dessa pluralidade, Sebastião oferece a redenção.

"O Carnaval é a transformação da vida das pessoas. Elas vestem um tipo de fantasia né? E a fantasia de um mito salvador tem muito a ver com a fantasia de uma festa que também é muito redentora e salvadora, já que ela é um divã de Brasil", diz Fabato.

"O sebastianismo, em si, é a vontade de um povo de ter um redentor, um messias, um salvador. E o Carnaval está muito nessa perspectiva. É o grande salvador de gentes, seja pela questão do desvario, da inversão. Porque é a festa do congraçamento, é uma festa que nos dignifica identitariamente. Então, acho que são espelhos. É como se o sebastianismo fosse um simulacro do que é o Carnaval", observa o autor.

Neste fim de semana, portugueses e marroquinos voltarão a se enfrentar -em Doha, não em Alcácer-Quibir. Quem sobreviver ficará mais perto da coroação no Qatar. Quem perder poderá buscar abrigo nos lençóis maranhenses.


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