SÃO PAULO, SP (UOL - FOLHAPRESS) - A Argentina entra em campo nesta terça-feira (13), às 16h (de Brasília), para enfrentar a Croácia, pela semifinal da Copa do Mundo do Qatar, naquele que é seu jogo mais importante dos últimos anos.

Comandada por Lionel Messi, um ídolo mundial, a seleção tem chamado a atenção daqueles que não acompanham o futebol argentino por uma questão relacionada à sua etnia. Afinal, por que não há jogadores negros na equipe?

Quem acompanha Copas do Mundo há tempos já se habituou a ver jogadores às vezes com traços europeus e sobrenomes muitas vezes italianos, como Messi, Caniggia e Passarella (ou Maradona, Tarantini, Ruggeri...).

A curiosidade por causa desta questão étnica chegou até mesmo ao jornal norte-americano "The Washington Post", que publicou no último fim de semana um artigo analisando a diferença da Argentina para outros países da América do Sul nesta Copa, como Brasil, Equador e Uruguai. A "Celeste Olímpica" contou nesta edição com um famoso afrodescendente, o meia Nicolás de La Cruz, do River Plate.

O último censo argentino com os números completos é o de 2010 (o de 2022 está em fim de cálculo). Nessa pesquisa de 12 anos atrás, 149.493 pessoas, meros 0,003% da então população da Argentina (40,79 milhões), era negra.

"Muitos escravos negros morreram durante as guerras da independência da Argentina", explicou à reportagem Luciana Bonder, professora do Instituto de Genética da Universidade de Buenos Aires (UBA). Tais conflitos ocorreram entre 1810 e 1819, e nesse período houve também uma grande deserção desse contingente para países como Peru e Uruguai.

Há uma lenda muito repetida na Argentina para justificar a diminuta população afrodescendente. Por tal guerra, as mulheres do país se casavam e formaram família com imigrantes europeus. "Elas, na verdade, eram vítimas de um regime opressivo que ditava suas vidas", analisa o ensaísta Martín Caparrós, um dos mais conceituados intelectuais argentinos em todo o mundo.

Ele faz questão de desmentir outro mito que atrelava a diminuição da população argentina às doenças que brotavam nas zonas mais humildes (como a febre amarela em 1871).

"Os dados oficiais mostram que a população negra diminuiu rigorosamente na média das outras origens, isso não tem nada a ver."

"A seleção argentina pode não incluir pessoas de ascendência africana por decisão técnica, mas tampouco é um país totalmente branco", afirma Carlos Pagni, historiador e colunista do jornal "La Nación".

"Há pessoas que no país podem ser vistas ou chamadas de 'morenas, bronzeadas'. É comum ouvir na Argentina tais apelidos para designar pessoas que não são brancas. Há muitos jogadores que poderiam ser descritos como morenos."

"É estupidez imaginar que a seleção não convoca jogadores negros por racismo", cravou o veterano jornalista esportivo argentino Juan Carlos "Toti" Pasman, que está no Qatar.

"Todo técnico quer ganhar. Ou alguém imagina que De La Cruz, se fosse argentino, não teria oportunidade na seleção? Jogando em um clube como o River, ainda por cima? Tremenda bobagem."

Em seu livro "Os Argentinos", publicado em 2012, o jornalista Ariel Palacios, correspondente em Buenos Aires há 27 anos, relembra: "O grande escritor Borges cita ocasionalmente em seus poemas a presença de negros na Argentina. Esta população africana tinha um peso significativo na época da colônia".

"No caso da cidade de Buenos Aires, entre 25% e 30% dos habitantes antes da Independência eram escravos trazidos da África ou seus descendentes. Nos primeiros anos das guerras da Independência, grande parte deles constituiu os grupos de soldados que geralmente iam na vanguarda das tropas (e, portanto, tinham mais baixas que o resto)."

Em sua obra, Palacios situa o cenário daqueles tempos: "O racismo crescente também levou diversos afro-argentinos a migrar do país. Muitos partiram para o Uruguai, onde a comunidade era maior e sofria menos níveis de pressão por parte das autoridades e da sociedade".

"O racismo estava claro no poema épico-gauchesco Martín Fierro, adotado pelas autoridades escolares argentinas desde o final do século 19 como o 'livro nacional'".

Conhecida como música popular portenha, o tango tem origem na comunidade negra: "Os 'tangólogos' fazem questão de deixar isso evidente. No entanto, também é verdade que a colossal influência italiana no tango deixou esse ritmo praticamente sem vestígios afros (exceto, remotamente, nas milongas, um ritmo mais acelerado do tango)", segue o livro de Ariel Palacios.

"Mas embora quase que visualmente desaparecidos, a imensa maioria dos afro-argentinos que podem ser vistos nas ruas atualmente são na realidade os imigrantes de Cabo Verde que chegaram a partir de 1960. Os afro-argentinos estão presentes nos genes argentinos."

Há dois jogadores campeões mundiais pela Argentina que são afrodescendentes.

O goleiro reserva Héctor Baley, integrante da seleção campeã de 1978, e o volante (e xará) Héctor Enrique,em 1986, cujo apelido na Argentina até hoje é "Negro Enrique".

Por causa do tom de pele, Baley era chamado de "Chocolate": "Recebi esse apelido quando jogava no Estudiantes. Ficou por toda a vida, todo mundo me chama assim", contou, em entrevista ao canal de TV C5N em 2018.

Ao portal argentino "Infobae", Baley revelou em 2020 que sofreu muito preconceito: "Há discriminação no meu país por causa da cor de pele. Me xingavam. Mas como era conhecido, acabei sendo bem menos insultado. Antes disso, me senti discriminado, mil vezes".

Outro exemplo de jogador afrodescendente a defender a Argentina é o lateral Hugo Ibarra, hoje técnico do Boca Juniors. Com passagens pela seleção no ciclo de Marcelo Bielsa, ele chegou a ser até mesmo capitão da equipe em 1999.


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