BARCELONA, ESPANHA (UOL/FOLHAPRESS) - Uma torcedora sobe no teto de alumínio do banco de reservas do time da casa. Aos gritos, ela incentiva os jogadores, xinga o árbitro e provoca a torcida rival. Tudo ao mesmo tempo, ou quase. Ela representa em uma atitude as mais de seis mil vozes que não se calam durante os 90 minutos.
Em campo, veteranos de cabelos brancos se misturam a jovens que ainda sonham com uma carreira de sucesso. Há estrangeiros que tentam a sorte na Europa, ex-jogadores da base do Barcelona, uma coletânea de perfis tão diferentes quanto o do público nas arquibancadas. São semiamadores, mas, numa tarde de domingo, ganham status de estrelas diante de um estádio lotado em um bairro histórico de Barcelona.
O palco é o Campo Municipal Narcís Sala. O dérbi entre Sant Andreu e Europa coloca frente a frente times centenários de distritos importantes da capital catalã -San Andreu e Gràcia, outrora cidades, ambos anexados ao plano urbano barcelonês em 1897.
O duelo ganha ainda mais importância porque vale a liderança do Grupo V da Terceira Divisão da RFEF, equivalente à quinta divisão nacional espanhola. Ser campeão do grupo, formado apenas por times catalães, garante uma vaga na Segunda Divisão da RFEF (a quarta na pirâmide nacional); ser segundo significa ir para um playoff com três fases eliminatórias.
Diante de um estádio lotado (a ponto de não haver lugar para todos os espectadores sentados), as duas equipes não decepcionaram quem esperava tensão e rivalidade. O futebol não foi exatamente protagonista, e o empate por 1 a 1, conquistado no último lance do jogo pelo Europa, não mudou a classificação do campeonato, a falta de três rodadas. O Europa lidera com dois pontos de vantagem.
Mas, para quem não é torcedor de nenhum dos dois times, o resultado importa menos que a experiência vivida na tarde de domingo. Passar pelo portão do Narcís Sala era como entrar em um portal direto para uma partida de Copa Libertadores de trinta ou quarenta anos atrás.
As torcidas organizadas eram separadas pelos 110 metros de campo de grama sintética, atrás dos gols. Sim, um dérbi com torcida visitante!.A diretoria do Sant Andreu cedeu 700 ingressos ao Europa (mesmo número cedido pelos rivais na partida do primeiro turno). As organizadas são protagonistas de uma rivalidade ferrenha, mas o time da casa sempre abre a porta para os adversários.
Nas tribunas, longe dos ultras, idosos e crianças se misturavam, boa parte com a camisa amarela com listras vermelhas do Sant Andreu. O jogo era o programa familiar de um dos maiores bairros residenciais de Barcelona. Só que em campo, com a liderança em jogo, o clima de tranquilidade não deu as caras.
E, enquanto a cortesia do pré-jogo virava fumaça, quem viveu a Libertadores dos anos 1980 e 1990 não podia deixar de ligar os pontos. A faixa ensanguentada na cabeça do zagueiro Arnau Campeny, do Europa, tinha um quê de Hugo de León, capitão do Grêmio na conquista de 1983. Os torcedores balançando alambrados colados à linha de fundo remetiam aos caldeirões argentinos. Os torcedores apinhados nas sacadas dos apartamentos ao lado do campo lembravam os "edifícios-camarote" do antigo Palestra Itália. E, claro, o uniforme do Europa, branco com um "V" azul, semelhante ao do Vélez Sarsfield.
No intervalo, uma versão em heavy metal do hino da Catalunha, Els Segadors, unia guitarras a versos como "Que o inimigo trema diante do nosso escudo". Nenhum dos dois times tremeu. Diante da possibilidade de conflitos e confusão, ninguém tirou o pé.
O jogo, que já era um barril de pólvora, explodiu em tensão nos minutos finais. Com o Sant Andreu em vantagem, os gandulas começaram a jogar bolas em campo durante os ataques do Europa. O ato antidesportivo tirou os visitantes do sério, mas quem perdeu a cabeça foi o Sant Andreu, que teve dois expulsos.
Nos instantes finais, com nove em campo, o time da casa não aguentou e cedeu o empate. No replay, visto horas depois, há uma sensação de impedimento. Mas na quinta divisão do futebol espanhol, o VAR não apita.
Na festa pelo empate, o treinador do Europa, Ignasi Senabre, invadiu o campo e comemorou fazendo gestos para o banco rival. O que se viu na sequência foi outro clássico da Libertadores de outrora, o momento "cenas lamentáveis", com jogadores, comissão técnica e dirigentes dos dois clubes trocando socos, empurrões e pontapés. Sem saber o que fazer diante do caos, o árbitro encerrou a partida.
FUTURO E PASSADO
Nas próximas semanas, as duas equipes continuam a luta pelo acesso à Segunda Divisão. A batalha de ambas, porém, é pela sobrevivência.
Criados no início do século 20 -o Europa nasceu em 1907, o Sant Andreu em 1909-, os dois clubes foram rivais ferrenhos de Barcelona e Espanyol nos primeiros anos do futebol na Catalunha.
O Europa chegou a ganhar a Copa da Catalunha há 100 anos, na temporada 1922-23, vencendo o Barcelona, em uma época que o torneio era o mais importante disputado pelos clubes; também em 1923, foi vice-campeão da Copa do Rei. Em 1928, foi um dos fundadores da Liga Espanhola.
O Sant Andreu jamais chegou tão longe, mas frequentou a Segundona durante as décadas de 1950 e 1970, chegando a flertar com o acesso para a elite em pelo menos duas temporadas. Nos últimos anos, a glória máxima foi passar por três fases da Copa do Rei e enfrentar o Atlético de Madri por uma vaga nas oitavas de final, em 2018-19. Perdeu por 5 a 0 no agregado.
Por uma série de fatores esportivos, políticos e sociais, os dois clubes de bairro acabaram engolidos pelo Barça, que se tornou um gigante local, depois nacional e mundial, deixando pouco espaço para que outros times da cidade -à exceção do Espanyol- pudessem brilhar.
Mas, num domingo de dérbi, Sant Andreu e Europa voltam a ser grandes. E, mesmo que o futebol não acompanhe em nível técnico, a torcida vive uma festa e uma atmosfera que não existem no Camp Nou.
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