SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O bicheiro Castor de Andrade reuniu as jogadoras no vestiário de Moça Bonita. As atletas do time feminino do Bangu não sabiam o que esperar. Talvez palavras de incentivo. Quem sabe uma bronca porque, elas reconhecem, o patrono do clube detestava perder. Elas só não estavam prontas para o que viria.

"Ele disse que ia acabar com o time", relembra a atacante Maria Lucia Lima, a Fia.

Era o fim, há 40 anos, de uma das mais lembradas rivalidades da história do futebol feminino. E a extinção da equipe ocorreu por causa da partida mais icônica da história da modalidade no país. A final do Campeonato Carioca de 1983, entre Bangu e Radar.

Castor tomou a decisão contra sua vontade. Na sua visão, não havia outra saída.

"Havia pressão de conselheiros, de gente que não gostava do futebol feminino. E a confusão tornou tudo pior. Ficou um gosto amargo porque não queríamos que o time terminasse daquela forma", relembra a ponta Marisa, que também atuaria como lateral e zagueira.

Na decisão estadual daquele ano, em 12 de outubro, o Radar foi campeão em um estádio de Moça Bonita lotado ao ganhar por 1 a 0. O jogo foi paralisado ao 35 minutos do segundo tempo, quando o árbitro Ricardo Durans não marcou um pênalti para o Bangu. Castor de Andrade, cercado de seus seguranças, alguns deles policiais armados à paisana, invadiu o campo. O juiz saiu em disparada e foi agredido repetidas vezes.

"As imagens mostram um massacre que não aconteceu", diria depois o bicheiro, em imagem resgatada pelo documentário "Doutor Castor".

Apesar do tumulto, não houve briga entre as jogadoras. A maioria se conhecia das partidas de praia em Copacabana.

"A gente ficou com medo, deu correria dentro de campo. Eu fiquei quieta, parada debaixo da trave. Não saí de lá por nada", relembra Mag, goleira do Radar e nome histórico da seleção brasileira.

Os socos e pontapés no árbitro e as cenas de gente com revólveres na cintura em campo foram parar nas emissoras de TV e nas páginas de jornais. Castor foi a julgamento e ficou com receio de que aquilo prejudicasse o que era realmente a sua menina dos olhos: o elenco masculino, em busca do primeiro título estadual desde 1966. O que não aconteceu.

"Aquele jogo só serviu para atrapalhar o Bangu. A partir daí, os árbitros fizeram complô contra o time masculino e o prejudicaram de todas as formas no Brasileiro da primeira divisão de 1984. O Bangu não passou da primeira fase. Outro dia teve um jogo feminino lá em Moça Bonita: Bangu 0 x 2 Flamengo. Mas, para sempre, quando falarem de futebol feminino e o estádio de Moça Bonita, vão se lembrar daquele jogo. Tudo no Bangu dos anos de 1980 virou um trauma", analisa o historiador do clube da zona oeste carioca, Carlos Molinari.

A final marcou a história da primeira e mais acirrada rivalidade entre dois times femininos do futebol nacional. Não era pessoal, apenas esportivo. O Radar era tão soberano que ganhou o epíteto (motivo de muita discussão) de o "time que nunca perdeu". O Bangu, com a coordenação de dona Wilma, a mulher de Castor de Andrade, apareceu para desafiar o rival que era considerado imbatível.

"A semana antes de a gente enfrentar o Radar era diferente. Todo o mundo falava do jogo", lembra Fia.

"A gente tinha um time quase imbatível. Mas o Bangu tinha jogadoras que nos incomodavam. A nossa sorte é que tínhamos as que faziam diferença em campo", afirma Mag.

O Radar representava tanto a seleção brasileira que chegou a jogar usando a camisa amarela da CBF. Isso servia de gás para o Bangu tentar destronar o rival que ganhou seis vezes a Taça Brasil e o Carioca (de 1983 a 1988).

"Era como se fosse o Fla-Flu do masculino. Eram os dois melhores times, os dois que poderiam ser campeões. Havia amizade entre as jogadoras", diz Marisa, que atuou pelos dois clubes.

A originalidade dessa rivalidade é que ela não foi derivada de clássicos do masculino. Não havia elenco de homens no Radar, embora um deles fosse fundamental pelo sucesso da empreitada. Eurico Lira fazia na agremiação de Copacabana o mesmo que Castor de Andrade praticava no Bangu.

O bicheiro não pagava salários para as jogadoras. Dava "agrados", distribuía bichos generosos, a depender da vitória, oferecia presentes e quitava contas médicas. Lira usava dinheiro de patrocinadores para passar parte dos recursos às atletas.

"O Eurico sempre conseguia patrocínio. A gente jogava com as marcas na camisa. Eu atuava com fita do patrocinador que pagava o salário que eu usava para complementar a renda. Ele nunca deixou de pagar. Sempre pagou", assegura Mag.

A falta de literatura e de registros históricos ajudaram a criar o mito que cercou o Radar e a rivalidade com o clube de Moça Bonita. As jogadoras não se lembram se o Bangu venceu algum dos clássicos.

"Acho que a gente empatou um", afirma Fia.

Mesmo o histórico do Radar é controverso. Há versões de que a equipe, em sua história, tenha perdido quatro vezes, duas, uma ou nenhuma. Não há fichas das partidas.

"Acho que a gente foi derrotada uma vez, pelo que me lembre. Talvez no Mundialito de Cabo Frio. Perdemos para a Alemanha ou os Estados Unidos. Geralmente, a gente ganhava tudo", diz Mag.

Apesar da pouca visibilidade, as opiniões são que as partidas entre Radar e Bangu tinham muita qualidade e representavam o que de melhor o futebol feminino tinha. Mas tudo terminou em 1983.

"Os nossos times eram melhores do que os que existem hoje em dia", assegura Fia.

É uma opinião de uma banguense que também se espalhou ao Radar.

"Se as jogadoras de linha [daquela época] estivessem atuando hoje, sairiam craques pelo ladrão. Porque elas eram craques. Por isso, tem de respeitar, e a geração de hoje tem de honrar o que foi feito no passado", pede Mag.


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