SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O Corinthians lançou recentemente um uniforme em tom amarelo-claro. Uma referência às roupas usadas por Sócrates, Casagrande, Wladimir e Juninho em célebre comício no vale do Anhangabaú, em 1984, em uma época na qual jogadores alvinegros e o próprio clube participaram do processo de abertura política do Brasil no fim da ditadura militar.
O mesmo Corinthians (ou será outro?) elegeu no último dia 25 um presidente com publicações pró-Ernesto Geisel, um dos presidentes da República no regime militar. Vencedor como candidato da oposição, Augusto Melo derrubou um grupo que vinha se perpetuando no poder e vai substituir Duilio Monteiro Alves, filho de Adilson Monteiro Alves, figura relevante da Democracia Corinthiana.
Se parece confuso, é porque é. Como se vê, é em uma espécie de crise de identidade que a agremiação do Parque São Jorge celebra os 40 anos do bi da Democracia. Foi em 14 de dezembro de 1983 que o movimento -um marco na história do time, um orgulho para a Fiel e uma organização que transcendeu o futebol- obteve o seu ápice esportivo.
Liderada pelo craque Sócrates, a formação preta e branca obteve o segundo título estadual consecutivo contra o São Paulo. Na conquista daquele Campeonato Paulista, sacramentada com um gol do Doutor nos acréscimos, os atletas entraram em campo carregando uma faixa: "Ganhar ou perder, mas sempre com democracia".
Ganhou.
E referendar as palavras com resultados em campo -em um período com prioridade às competições estaduais- foi considerado importante para que elas não caíssem no vazio, como discursos de jovens que não paravam em pé.
Na véspera da decisão, Sócrates e Juninho -que seria técnico do clube entre 2003 e 2004, como Juninho Fonseca- comeram e beberam até a madrugada em um restaurante no Bixiga. No dia seguinte, foram os melhores em campo contra o São Paulo de Waldir Peres, Oscar, Darío Pereyra, Zé Mário e Zé Sérgio.
Afrouxar o regime de concentração foi uma das decisões tomadas coletivamente na Democracia Corinthiana. Havia hierarquia e divisões claras de tarefas -como atestaram os técnicos do bi, Mário Travaglini e Jorge Vieira-, mas questões como horários de treinos e até a contratação de reforços eram debatidas pelo grupo, com votos do roupeiro ao presidente Waldemar Pires.
O Brasil ainda vivia sob uma ditadura. E um clube de enorme apelo popular usava um uniforme com a palavra "democracia". Ou "dia 15 vote", como ocorreu em novembro de 1982: às vésperas das primeiras eleições diretas para governador em quase 20 anos, a lembrança e a recomendação pareciam necessárias.
"O novo Corinthians é unido e político", publicou o carioca Jornal do Brasil, naquele 1982, um momento em que a cobertura dos diários, especialmente a esportiva, era muito mais regional do que nacional.
Dessa união fazia parte também a arquibancada. Torcedores alvinegros bolaram uma estratégia de guerra para entrar no Morumbi, em jogo de 1979 contra o Santos, pedindo em uma faixa "anistia ampla, geral e irrestrita" no processo de abertura política. O futebol era o combustível, mas era óbvio que se tratava de muito mais do que futebol, o que desembocou na Democracia Corinthiana do início dos anos 80.
Havia, claro, os detratores. A cada derrota ou a cada obstáculo no caminho, a imprensa questionava com frequência as liberdades concedidas aos atletas. Como ocorreu quando Sócrates, liberado para uma partida de futebol de salão, lesionou-se.
O goleiro Leão, depois técnico Emerson Leão, é um que minimiza quão democrática de fato foi a Democracia. Mas ele mesmo, que tinha história no arquirrival Palmeiras e visão política bem diferente da do líder Sócrates, foi contratado após votação do grupo, recebendo do Doutor voto favorável.
"Talvez eu represente uma nova filosofia nesta experiência muito bonita que se vem fazendo no Corinthians. As posições não são incompatíveis", disse à Placar, em 1983, o arqueiro, importante na conquista do bi. Com sua camisa zebrada, fez uma defesa difícil em um chute de Zé Sérgio e buscou no ângulo uma paulada de Marcão no jogo derradeiro.
Sócrates foi ainda mais decisivo. O craque, que tinha ficha no Dops (Departamento de Ordem Política e Social, o órgão repressor da ditadura), marcou os quatro gols da equipe nos jogos decisivos: um em cada duelo com o Palmeiras, nas semifinais, um em cada embate com o São Paulo, na decisão. No ano seguinte, bradou no Anhangabaú: "Caso a emenda Dante de Oliveira passe na Câmara dos Deputados e no Senado, eu não vou embora do meu país!".
Ainda que o processo de abertura fosse irreversível, o Congresso Nacional não aprovou a emenda constitucional que restituiria a democracia no Brasil. Sócrates foi jogar na Fiorentina, e o movimento da Democracia minguou no Corinthians.
Um Corinthians que, após o bi, ficou quatro temporadas completas sem levantar um troféu: 1984, 1985, 1986 e 1987. Nunca mais isso aconteceu até o mandato de Duilio, filho de Adilson Monteiro Alves. O time preto e branco ficou só em branco em 2020, 2021, 2022 e 2023.
O sobrenome Monteiro Alves não significa para o Corinthians o que significou há 40 anos. Diretor de futebol da Democracia, o sociólogo passou a ser criticado por muitos que o aclamavam, especialmente por sua participação no governo de Luiz Antônio Fleury Filho em São Paulo (1991-1994). Recentemente, tido como pouco democrático, foi expulso do grupo intitulado "Esporte pela Democracia".
Já seu filho teve um mandato tão mal avaliado como presidente alvinegro que finalmente foi criado o cenário para a retirada do poder no Corinthians do grupo que o assumiu em 2007, um continuísmo que não é exatamente associado à democracia. O líder desse grupo, Andrés Sanchez, conseguiu emplacar todos os seus sucessores até que Duilio assumisse a cadeira, ganhasse zero título e perdesse o bastão para Augusto Melo.
Com ingressos caros, a torcida, como observou o técnico Mano Menezes, não tem o comportamento de apoio constante de outrora. A própria organizada Gaviões da Fiel -que já se orgulhou de ter nascido "contra a ditadura de Wadih Helu no Corinthians e contra a ditadura militar no Brasil"- apoiou na recente eleição o fã declarado de Geisel.
É nesse cenário que o Corinthians celebra os 40 anos do bi da Democracia. Com camisa comemorativa -vendida a R$ 699,99 no site oficial da fabricante-, mas distante do espírito demonstrado há quatro décadas, materializado na faixa "ganhar ou perder, mas sempre com democracia".
"Ficou para a história. Lembrar isso hoje mostra a grande diferença de comportamento entre aquele Corinthians e o atual. Uma pena, porque marcamos uma história no futebol mundial, e a nossa Democracia Corinthiana é usada para política dentro do clube", afirmou Casagrande, um dos ícones do movimento, à Folha de S.Paulo.
Resta recordar, e as palavras ideais para isso são as do lendário locutor Osmar Santos, outro que esteve no Anhangabaú, em camisa de tom amarelo-claro, pedindo Diretas Já.
"Lançado Zenon, um para lá, dois para cá. Saiu o goleiro. Pintou o gol do campeão. Recolheu, olha o bi! Para Sócrates. Tirulirulá, tiruliruli... E que gol! Do meu povo! Sócrates, Sócrates, Sócrates!", berrou na Rádio Globo. "O Corinthians é bicampeão paulista. Comemoração alegre e festiva do meu povo!"
O cronista Lourenço Diaféria, que chegou ser preso pela ditadura por um texto publicado na Folha de S.Paulo em 1977, escreveu sobre a Democracia Corinthiana no livro "Coração Corinthiano", de 1992. Ainda lhe parecia cedo para observar o lugar do movimento na história. Suas palavras, de novo, parecem fazer sentido.
"Um dia, quando esse movimento for examinado dentro do fenômeno maior chamado Corinthians, com tranquilidade e coração frio, ficaremos sabendo se a Democracia foi um sonho esgotado - ou se será o grande projeto para vigorar num país todo ele democrático, mais justo, mais esclarecido, mais límpido e menos poluído pela ignorância, pela miséria e pela irresponsabilidade", observou.
"Então saberemos se a Democracia Corinthiana valeu ou não valeu, de fato. E, se valeu, se ela foi apenas um clarão que iluminou o Corinthians no passado, ou se servirá para tornar a iluminá-lo no futuro."
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