MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - O Estado Soberano Antártico de São Jorge foi uma república teocrática autônoma fundada em 2011, com capital no polo Sul chamada de Estação Cidade de Sant'Ana. A nação manteve uma sede diplomática em Lugano, na Suíça, e endereços consulares na Itália. Seus cidadãos podiam pagar apenas 5% de imposto único, com direito a isenção em seus países de residência.

Esse Estado existiu na internet por ao menos sete anos antes de ser desmascarado como pura ficção. Uma investigação realizada em Catanzaro, na Calábria, no sul italiano, desvelou que, apesar de o país nunca ter existido -assim como seu território e seu atraente sistema tributário-, ao menos 700 pessoas pagaram para obter cidadania e documentos, como parte de um golpe que envolveu, até agora, cerca de EUR 400 mil (R$ 2,05 milhões).

Na última quinta (18), a polícia italiana cumpriu 12 mandados de prisão domiciliar contra investigados pela criação do esquema e de todo o aparato ligado ao fictício Estado de São Jorge. São 30 suspeitos, espalhados por ao menos sete regiões, de terem cometido os crimes de fraude, fabricação de documentos falsos, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.

Além da emissão de passaportes falsos e do imposto único convidativo -na Itália, a tabela do imposto de renda começa em 23%-, o grupo prometia financiamento a projetos de pesquisa, facilidades burocráticas para empresas, obtenção de registros profissionais e isenção para vacinas obrigatórias. Em alguns casos, a negociação envolveu a venda de terrenos na Antártida com a concessão de títulos nobres; um dos detidos se apresentava como príncipe. Os valores pagos giravam entre EUR 200 e EUR 1.000 (R$ 1.024 e R$ 5.100) por "cidadão".

Os primeiros indícios do golpe remontam a 2015, ano em que foi criada, no Facebook, a página "oficial" do país. Ali, os organizadores atualizavam a população "sangiorgesa" do funcionamento das instituições da pequena e longínqua nação. Publicavam os nomes dos membros do governo, dos tribunais e do Senado e as edições da "gazeta oficial", com decretos sempre amparados em artigos de uma Constituição. Dois jornais online, The Antarctic Tribune e La Teocrazia, ajudavam na divulgação das notícias. Tudo falso.

Pela rede social era possível conhecer como seriam as capas dos passaportes, a localização da capital, os logos dos serviços postal e de inteligência, insígnias e uniformes policiais -incluindo a versão de verão, com camisas de mangas curtas, apesar de o continente ser o mais frio do mundo. Os mais curiosos podiam ver um pouco de como era a suposta vida ali: uma das imagens mostra uma tigela de espaguete congelado, com o garfo suspenso no ar.

Havia espaço também para temas "sérios", como a importância de ser um Estado soberano e neutro. "A Itália não concorda com as sanções econômicas impostas à Rússia pela anexação da Crimeia. Mas a União Europeia quer continuar a impô-las. A Itália deve se curvar às decisões do órgão supranacional", diz trecho publicado em agosto de 2018.

"Eles eram muito bem organizados e com muita imaginação. Criaram a ideia de que realmente poderia ser um Estado", disse à reportagem Antonio Caliò, diretor da Divisão de Investigações Gerais e Operações Especiais da polícia italiana em Catanzaro. Ele conta que a operação, batizada como L'Isola che non C'è (a terra do nunca, em referência à história do Peter Pan), começou por acaso.

Em abril do ano passado, os policiais receberam uma denúncia anônima de que um endereço na cidade calabresa tinha alguma coisa errada. "Quando chegamos para fazer uma busca, as pessoas que estavam lá disseram que a polícia não podia entrar ali porque era um território com imunidade diplomática", lembra Caliò. Duas pessoas foram presas por posse de drogas.

Segundo a investigação, ainda em andamento, os participantes do golpe eram atraídos especialmente pelas supostas vantagens fiscais e pela possibilidade de obter documentos não italianos e diplomáticos, para uso em fins ilegais, incluindo o tráfico de drogas de pequeno porte e a liberação de registros profissionais.

Um dos detidos é um médico negacionista que já havia sido suspenso por prescrever terapias sem comprovação científica a pacientes.

Os mentores também faziam uso de documentos falsos. O dinheiro arrecadado com o golpe passou por diversas etapas de lavagem por meio de uma conta bancária em Malta, no mar Mediterrâneo. Ainda está em apuração a participação de residentes em outros países no esquema.


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