SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Digamos que alguém pretenda implodir as teorias mais consagradas sobre as origens desse bicho chamado ser humano. Seriam necessários dois movimentos. O primeiro estaria em não ter a mínima cerimônia em atropelar e fazer picadinho de personagens com a estatura filosófica de um Hobbes ou um Rousseau. Em seguida seria preciso acompanhar com muito empenho todas as pesquisas que nos últimos 30 anos podem ter rompido com o senso comum em disciplinas como antropologia e arqueologia.
Pois foi exatamente o que fizeram dois conhecidos acadêmicos, David Graeber, que lecionou nos Estados Unidos e na London School of Economics, e David Wengrow, arqueólogo na University College London. Ambos publicaram, em 2021, "The Dawn of Everything", livro com título muito ambicioso que a Companhia das Letras acaba de traduzir, "O Despertar de Tudo".
São quase 700 páginas de um projeto ao mesmo tempo iconoclasta e inovador. Se os autores não cometeram nenhum grave engano, é provável que se tornem um divisor de águas nas ciências sociais, que dentro de 30 ou 40 anos se lembrarão dessa dupla como protagonistas teóricos do recomeço de um trajeto iniciado sobre as ruínas de alguns séculos de bibliografias.
O ponto de partida fictício -aquele que não deve ser respeitado- é para os dois professores o período a partir do qual começou a existir a desigualdade. Eles argumentam que a pergunta orienta respostas derivadas do texto de 1755 com o qual o filósofo Jean-Jacques Rousseu concorreu a um concurso aberto pela Academia de Dijon.
Seu "Ensaio sobre os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens" inaugurou uma forma de pensar segundo a qual, de início, os homens viviam em pequenos bandos que não tinham hierarquia (nem reis nem chefes). Esse quadro idílico se comprometeu quando a civilização de coletores-caçadores descobriu a agricultura. Cultivar a terra teria trazido a propriedade, os litígios, os juízes, o governo e, em suma, a instituição do Estado.
O que Graeber e Wengrow argumentam -o primeiro faleceu semanas após a entrega das provas- é que, a rigor, nada disso faz sentido. Não há estágio primitivo de ingenuidade e pureza, uma genealogia pela qual os bandos, ao ganharem musculatura hierárquica, deram lugar às tribos e estas às chefaturas antes de desembocarem no Estado. E também não é necessariamente verdade que a desigualdade esteja ligada à aparição das cidades, há 3.500 anos, ao sul do atual Iraque.
Esse conjunto de "certezas" é desmentido por descobertas de arqueólogos e antropólogos que pesquisaram ao norte da atual província canadense de Québec. E, mais para trás em termos de cronologia acadêmica, há algo familiar para nós, brasileiros, com Claude Lévi-Strauss e os nhambiquaras, com os quais o antropólogo franco-belga entrou em contato em Mato Grosso nos anos 1930.
Vejam que a pertinência não está em ligar o nome dele ao estruturalismo, sua origem epistemológica. Ele entra no livro dos dois autores por ter descoberto que os nhambiquaras alternavam, dependendo de estarem no período de chuvas ou secas, dois modelos de organização interna, igualitário ou hierárquico. E aqueles que exerciam algum poder voltavam em seguida a conviver com os demais, mas em condição de igualdade.
O fato é que Rousseau é como um cachimbo que entorta a boca dos antropólogos -Graeber e Wengrow não usam comparação tão rasteira-, e até Francis Fukuyama é citado no livro pelos lábios desfeitos. Ele também acreditava que a agricultura fosse fonte da desigualdade no final do período neolítico.
E Thomas Hobbes? Entra na história porque seu "Leviatã" (1651) acreditava que no período anterior ao Estado os homens exerciam livremente o passatempo impune de se agredirem uns aos outros. De onde, e aqui os autores simplificam as coisas por uma questão de didatismo, Hobbes é o predileto dos conservadores, enquanto Rousseau o é dos progressistas.
Por fim, a dupla de acadêmicos não traz resposta a tudo. Reagem encafifados, por exemplo, à descoberta de ricas sepulturas neolíticas que indicam a presença da opulência de alguns e, portanto, de clara hierarquia de riquezas.
Isso ocorre no sítio de Sunghir, ao norte da Rússia, ou em Dolni Vestonice, na bacia morávia, com sepulturas que datam de 26 mil a 34 mil anos.
Na Dordonha, atual França, surgiu algo ainda mais curioso: é a sepultura de 16 mil anos de uma jovem apelidada pelos arqueólogos de dama de Saint-Germain-de-la-Rivière. Ela traz um rico conjunto de ornamentos feitos com dentes de veado. O bizarro é que esse animal existia apenas no País Basco. Para confeccionar a mortalha, os envolvidos precisaram percorrer uma distância de 300 quilômetros para voltar com os dentes ornamentais.
O DESPERTAR DE TUDO: UMA NOVA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
Preço R$ 119,90 (696 págs.); R$ 49,90 (ebook)
Autor David Graeber e David Wengrow
Editora Companhia das Letras
Tradutores Claudio Marcondes e Denise Bottmann
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