SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ao entrar na antiga redação do jornal de oposição moscovita Novaia Gazeta, o visitante se deparava com velhos computadores em um gabinete de vidro. Geralmente as velharias eram ignoradas, exceto que algum zeloso funcionário apontasse: "São as máquinas doadas nos anos 1990 pelo senhor Gorbatchov!".
Em um país famoso pelas estátuas que erigiu e derrubou ao sabor das mudanças políticas, não deixa de ser irônico que essa seja a coisa mais próxima de uma memória pública de Mikhail Sergueiévitch Gorbatchov na capital de seu país.
Sua morte política ocorrera sem que houvesse tempo de haver imagens a serem retiradas de pedestal; com efeito, a estátua mais famosa do último líder soviético fica na biblioteca presidencial Ronald Reagan, nos EUA.
Essa contradição parece acompanhar o epitáfio possível de Gorbatchov, agora morto de fato agora aos 91 anos em um hospital de Moscou --ele sobreviveu até ao Novaia Gazeta, uma das vítimas da censura militar de Vladimir Putin devido à Guerra da Ucrânia. A definição final "refém inepto das circunstâncias" andam de mãos dadas com "o último grande estadista do século 20.
Gorbatchov rejeitaria tal colocação. Nas diversas entrevistas desde que deixou o poder com o fim da União Soviética em 1991, assumiu erros, mas nunca deixou de transparecer incerteza sobre o que considerava seu lugar na história.
Isso ficou mais claro no magnífico documentário "Gorbatchov.Céu", lançado em 2020 por Vitali Manski, o derradeiro réquiem o último líder da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, no qual ele vaga como um fantasma entre suas memórias.
No Ocidente, ele morre vingado. A lembrança do líder que ajudou a Europa a se livrar da tirania comunista, que trouxe humanidade a um monólito político e que solapou o medo da destruição nuclear sempre será superior às nuances do relato.
Para o russo ordinário, não é bem assim. Uma pesquisa feita pelo instituto FOM por ocasião de seus 80 anos, em 2011, mostrou que 52% dos russos viam o legado de Gorbatchov como "muito ruim"; apenas 11% o aprovavam. Naquele ano, ele ganhara enfim uma comenda do governo russo, mas sem muita fanfarra. De lá para cá, o desprezo seguiu igual.
Como mostrou a pesquisa e outras feitas depois, a memória da anarquia liberal que quase destruiu a Rússia nos anos 90 é creditada tanto a ele quanto ao sucessor, Boris Ieltsin (1931-2007).
Nascido em 2 de março de 1931 de uma família de lavradores de Stravopol, no sul russo, Gorbatchov foi um produto soviético. Diferentemente dos líderes anteriores, veio ao mundo e cresceu sob a égide das oportunidades que o Partido Comunista da União Soviética concedia.
Formado em direito pela Universidade Estatal de Moscou e com especialização em economia agrícola, Gorbatchov entrou no partido nos anos 50. Na faculdade, encontrou sua mulher, Raíssa Titarenko, com quem casou-se em 1953 e teve a única filha, Irina.
Após graduar-se em 1955, voltou para a cidade natal e começou a participar da vida política. Tendo pilotado colheitadeiras, sempre trabalhou com o viés de organização do campo.
Em 1970, era dos mais jovens chefes regionais do partido no país. Na época, o regime estagnava economicamente sob a mão de ferro de Leonid Brejnev, que priorizava a disputa armamentista com os Estados Unidos em detrimento às condições domésticas. A bomba-relógio estava armada.
Como em toda sociedade totalitária, o serviço secreto era o único a saber da real extensão dos problemas. Assim, o chefe da KGB, Iuri Andropov, começou a procurar nomes capazes de trazer algum dinamismo ao sistema.
Em 1978, o convidou para o Comitê Central do partido; em 1979, aos 48 anos, Gorbatchov era o mais novo integrante do Politburo (órgão central de governo) da história soviética, cuja idade média dos membros superava os 65 anos.
Em 1984, ganhou notoriedade ao chefiar uma delegação à Londres de sua futura amiga Margaret Thatcher com sua mulher, Raíssa, ao lado. Aquela mulher elegante e jovial surpreendeu os analistas ocidentais, acostumados com fotos pálidas de senhoras donas de um distante ar camponês.
E a fila andou em Moscou. Em três anos, o Kremlin perdeu sua gerontocracia: morreram Brejnev (1982), Andropov (1984) e Konstantin Tchernenko (1985). Gorbatchov foi ungido secretário-geral do partido, líder do país, aos 54 anos.
No poder, já em maio de 1985 o líder falava na estagnação econômica do Estado soviético e a necessidade de reforma, que ganhou caráter oficial no 27º Congresso do Partido Comunista, em fevereiro de 1986.
Nos anos seguintes, o Ocidente se familiarizaria com os termos que balizavam a doutrina, de resto retirada do receituário de Andropov: glasnost (transparência, política) e perestroika (reestruturação, econômica).
Ambos os pilares eram de difícil manejo. Medidas de abertura econômica eram quase impossíveis no regime planificado; de um crescimento de 4,1% do Produto Interno Bruto em 1986, os soviéticos viram um tombo de -12% em 1991.
Ao liberalizar a expressão e soltar dissidentes, a glasnost criou uma onda pedindo mais liberdades. A cena cultural voltara a existir em Moscou. Do lado contrário, o establishment comunista se via ameaçado. Gorbatchov era especialmente frágil por não ter vínculos no sistema militar-industrial.
Sua sorte era ter como principal adversário público o mesmo Ronald Reagan (1911-2004) cuja biblioteca hoje o homenageia.
Na Presidência desde 1981, Reagan adotara termos cinematográficos como "Império do Mal" a ser combatido com um programa de "Guerra na Estrelas" para falar de Moscou. A pressão deu certo, e o Kremlin viu-se quebrado pela corrida armamentista.
Estima-se que até 70% da produção agrícola do país não conseguia chegar à mesa dos seus habitantes no começo dos anos 80.
O componente pessoal de Gorbatchov foi essencial para a aproximação com o Ocidente. Amigo da premiê britânica Thatcher, Gorbatchov e Reagan tornaram encontros de cúpula mais frequentes, e mesmo entre várias tensões e competições de ego havia uma cumplicidade antes impensável. A figura com uma enorme mancha vermelha na careca tornou-se capa de revistas ocidentais.
Naturalmente, nem todos ficaram felizes com isso. Os militares foram obrigados a uma retirada humilhante do Afeganistão, e viram concessões feitas aos inimigos de décadas. A burocracia comunista de repente viu seus privilégios expostos.
Aqui há divergências historiográficas sobre o que aconteceu: se Gorbatchov realmente comandava um processo ou se simplesmente surfava nele.
Seja como for, sempre cabe lembrar o famoso premiê tsarista Piotr Stolipin (1862-1911), para quem era impossível fazer reformas na Rússia sem antes endurecer o Estado porque o russo comum vê flexibilidade como fraqueza -lição ignorada por Gorbatchov, visto como inepto, que foi levada ao pé da letra nos anos de Vladimir Putin.
No fim da década, talvez a maior decisão estratégica de Gorbatchov na área externa definiu seu destino. Em um discurso em julho de 1989, ele afirmou o que já dissera no ano anterior a Reagan: que os países do bloco comunista europeu estavam livres para decidir seu destino.
Mais tarde ele diria que esperava uma reforma em série dos partidos comunistas da Cortina de Ferro. O que ocorreu foi mais simples: os regimes começaram a cair, um por um, e apenas a Romênia registrou violência. Em 1989, o símbolo máximo da Guerra Fria, o Muro de Berlim, ruiu; no ano seguinte, a Alemanha estava reunificada.
Por conta do efeito dominó, o líder soviético viu o auge de sua popularidade externa, ganhando o Prêmio Nobel da Paz de 1990.
O problema para Gorbatchov é que os países menos felizes em ter sido anexados à União Soviética começaram a pensar o mesmo que os colegas europeus. Assim, as três nações bálticas começaram a buscar a independência. Rincões asiáticos como o Quirguistão se rebelaram, sofrendo repressão.
Em casa, o líder tentou criar instâncias democráticas e manter o poder ao mesmo tempo com a criação do Congresso dos Deputados do Povo em 1989, que o elegeu presidente soviético em 1990. Mas a pressão separatista e a ascensão do rival Ieltsin como líder do maior país da URSS, a Rússia, minaram seu cronograma. A onda enfim iria o engolir.
Não deixa de ser ironia histórica que Putin hoje tente, "manu militari", retificar o motivo mais poderoso da dissolução de 1991, a independência da Ucrânia, a segunda República mais poderosa da união.
Anos depois, Gorbatchov iria lamentar a insistência em um sistema centralizado e a lealdade à instituição do Partido Comunista até quase seu fim, que viria a acontecer após o último grande ato de sua presidência: o golpe de agosto de 1991.
Naquele mês, o presidente tinha tudo pronto para a assinatura de um tratado que federalizava a União Soviética. Era pouco para os líderes liberais, que buscavam o fim do unipartidarismo e liberdades econômicas plenas, mas muito para a elite comunista.
Gorbatchov cometeu um equívoco, tirando dez dias de férias antes da data da assinatura. Na véspera, 19 de agosto, foi pego em sua "datcha" à beira do mar Negro de surpresa com a notícia de que havia um "comitê de emergência" instalado no poder em Moscou.
Um mundo atônito teve reações confusas, mas quem liderou a resistência ao golpe foi Boris Ielstin. Deu certo, e três dias depois Gorbatchov estava de volta a Moscou.
Seguiram-se meses de embate político sobre o futuro do país e do Partido Comunista, que perdeu o monopólio do poder. Em agosto, a Ucrânia declarou-se independente. Em dezembro, a União Soviética acabou quando Rússia, Ucrânia e Belarus, coração do império, declararam um acordo político-econômico.
Sem partido, e inexistindo um país para governar, Gorbatchov pediu demissão. Ieltsin vencera, e o derrotado nunca aceitou os nove anos de poder de sua nêmesis.
"Eu provavelmente fui muito liberal e democrático a respeito dele [Ieltsin]. Deveria tê-lo mandado como embaixador para o Reino Unido, ou talvez para uma antiga colônia britânica", disse Gorbatchov ao jornal britânico "The Guardian" em 2011. No documentário de Manski, ele apenas o chama de "idiota".
Os anos seguintes foram de completo ostracismo em casa, apesar das tentativas frustradas de montar um partido liberal com o bilionário Alexei Lebedev, seu amigo de longa data.
No exterior, contudo, sua estatura só fez crescer e atingiu um nível de certa celebridade: Gorbatchov virou garoto-propaganda das malas chiques da Louis Vuitton, participou de filmes do alemão Wim Wenders e virou figura constante de entrevistas e homenagens.
Raíssa, sua cara-metade pública e privada, morreu aos 67 anos em 1999, vítima de leucemia. No réquiem de Manski, sua presença em imagem é onipresente na mansão em que ele viveu os últimos anos, alternando seu tempo com internações.
Gorbatchov apoiou a eleição de Putin em 2000 e considerou necessárias as medidas autoritárias para colocar a casa em ordem após a confusão que sucedeu o fim da União Soviética. Mas o apoio cessou em 2006, com críticas duras pelo autoritarismo crescente.
Naquele ano, comprou 10% do nanico Novaia Gazeta, o jornal ao qual doara computadores no começo dos anos 90. Lá trabalhava Anna Politkóvskaia, jornalista crítica do Kremlin que foi assassinada na mesma época. Um de seus editores à época, Roman Schleinov, disse à Folha que Gorbatchov não influenciava na linha editorial, resumindo sua presença a visitas eventuais, artigos e entrevistas.
Durante os recentes protestos pró-democracia na Rússia, Gorbatchov insistia na necessidade de reformas e no afastamento de Putin. No filme de Manski, chamou Putin de ditador. Suas palavras tiveram ressonância só no Ocidente.
Resta saber se agora, na morte, algum tipo de iconoclastia reversa ocorrerá a um dos responsáveis pelo fim da Guerra Fria na Rússia. Será mais fácil achar uma estátua em Berlim ou Washington.
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