SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A guerra ideológica embutida na invasão da Ucrânia pela Rússia ganhou mais um capítulo com a bem-sucedida contraofensiva de Kiev que retomou quase toda a região de Kharkiv neste mês.

A bola da vez são as cruzes brancas que passaram a ser pintadas nos tanques e blindados usados pelos ucranianos nos ataques. Elas lembram a insígnia usada pela Wehrmacht, as Forças Armadas da Alemanha nazista (1933-45) em veículos semelhantes --aviões a tinham na fuselagem e asas, com a mais típica suástica na cauda.

"Coluna blindada com as mais puras cruzes da Wehrmacht", escreveu o blog militar russo BMPD no dia 7 passado, numa postagem que incluía uma série de tanques ucranianos rumando a Balaklia, uma das primeiras cidadezinhas reconquistadas por Kiev no nordeste no país.

A associação, feita em canais de Telegram de militares russos, não tem nada de inocente. Uma das justificativas retóricas de Vladimir Putin para lançar sua guerra em 24 de fevereiro foi a suposta desnazificação do país vizinho, algo que remete à memória história de toda a região, que foi violentamente invadida pelos nazistas em 1941.

Então parte da União Soviética assim como a Rússia, a Ucrânia foi palco de sangrentas batalhas ao longo da Segunda Guerra Mundial, até ser libertada em 1944, ano anterior ao fim do conflito. O país tinha um forte movimento nacionalista associado ao fascismo que colaborou com os invasores contra o inimigo comum: o governo comunista de Moscou.

Era uma etapa tardia do conflito formativo do império soviético, a Guerra Civil Russa de 1917-22, que opôs monarquistas e nacionalistas aos revolucionários bolcheviques --por fim vitoriosos. Cenários semelhantes foram vistos nos Estados Bálticos quando os nazistas os ocuparam, de 1941 a 1944.

Na Ucrânia, um dos maiores líderes fascistas do século 20, Stepan Bandera (1909-1959), é até hoje reverenciado em alguns círculos políticos de Kiev, e isso é denunciado em quase toda fala de autoridades russas sobre a guera.

O símbolo nos tanques pode não ter nada a ver com isso: a cruz cossaca, em diversas cores, é uma insígnia militar comum no país. O emblema das Forças Armadas da Ucrânia traz o tridente do Principado de Kiev que simboliza o país sobre uma cruz vermelha.

Mas a confusão está garantida, até porque se encaixa na disputa narrativa dos dois lados. Até camisetas do presidente Volodimir Zelenski com símbolos militares já foram chamadas de fascistas em redes sociais.

Não ajuda o seu governo o fato de que várias unidades militares sob seu comando terem associações conhecidas com o ideário neonazista. A mais famosa delea é o Regimento Azov, que foi incorporado à Guarda Nacional após o início da guerra civil no Donbass (leste do país) contra separatistas pró-Moscou, em 2014.

Ele foi severamente afetado na campanha russa no sul ucraniano. Sua fama tem sido suplantada agora pelo Regimento Kraken, criado no dia da invasão para reunir voluntários e que opera sob ordens do Ministério da Defesa, mas não do Exército. Ele está na linha de frente do avanço em Kharkiv, e tem diversos nacionalistas radicais e egressos do Azov.

Naturalmente, daí para dizer que o governo Zelenski é nazista, como acusa Putin, há uma boa distância. Mas há elementos para alimentar as acusações feitas pelo lado russo, e qualquer detalhe acaba sendo destacado --como se vê no caso das cruzes.

Elas foram vistas em tanques T-72 e T-64, além de blindados ocidentais. As cruzes servem também para uma função mais simplória: diferenciar os veículos em campo, já que Ucrânia e Rússia usam muito material semelhante, de origem soviética.

Foi o que os russos fizeram no começo da guerra, ao pintar letras como Z, O e V para identificar seus blindados e evitar fogo amigo.

O Z, principalmente, virou um símbolo da invasão, sendo propagandeado pelo Ministério da Defesa em frases que o incluíam, foneticamente porque a letra não existe no alfabeto cirílico usado no russo e no ucraniano, como "Pela Vitória". Bandeiras soviéticas também foram vistas com tropas de Moscou, ecoando a guerra dos anos 1940.


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