GUARULHOS, SP (FOLHAPRESS) - A morte da jovem curda Mahsa Amini é resultado do uso da religião como uma espécie de desculpa para a violência contra as mulheres, afirma à Folha de S.Paulo Javaid Rehman, relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos no país do Oriente Médio.

Para o especialista britânico-paquistanês, o fato de Amini ter morrido sob custódia da polícia por supostamente violar regras sobre o uso do véu islâmico se junta à repressão contra os protestos críticos ao regime teocrático do Irã como sintomas da escalada de violência sob a liderança do presidente Ebrahim Raisi.

O professor da Universidade de Brunel, em Londres, afirma ainda que há um recrudescimento da repressão sob o líder linha-dura, mas vê nas mobilizações após a morte de Amini uma oportunidade-chave para conquistas de direitos das mulheres.

Crítico a sanções, Rehman diz que falta pactuar consensos sobre direitos humanos para que a comunidade internacional pressione o Irã e lista outros tipos de violações que tem documentado sob o guarda-chuva do regime iraniano, como o matrimônio infantil.

PERGUNTA - Os protestos no Irã ganharam força por se tornarem uma válvula de escape para insatisfações diversas? Ou o caso de Mahsa Amini representa uma exceção?

JAVAID REHMAN - Historicamente ocorrem protestos no Irã, todos os anos, mass alguns são mais significativos. Em 2019, a população protestou de forma muito incisiva, e as forças de segurança mataram mais de 300 manifestantes. Não houve responsabilização por parte das autoridades.

O caso de Amini, uma vítima da repressão e da brutalidade estatal, começa como um protesto, mas está agora se desdobrando em um movimento que reivindica ou reafirma os direitos das mulheres. A política do uso do hijab viola direitos humanos fundamentais das mulheres e sua dignidade humana.

Diria que não é apenas mais um caso infeliz. O povo do Irã agora se levantou e não está aceitando a violência perpetrada pelo Estado. Esse movimento está se tornando nacional. O Estado está mais uma vez exercendo uma atitude repressora por meio da brutalidade. E temo que, com essa maneira de operar, haja ainda mais mortes.

Vimos também manifestações pró-regime. Como descreveria a opinião pública no Irã?

J. R. - O Irã é um Estado autoritário, que reprime os direitos civis fundamentais. Mas usar a força não acaba com a mobilização: as pessoas sabem que têm direitos fundamentais.

A grande maioria dos iranianos já não aceita essa repressão. A esmagadora maioria quer viver em paz, são pessoas democratas, querem que o Estado de Direito e os direitos humanos sejam respeitados. Mas a repressão, a agressão e a brutalidade do Estado minam a vontade da grande maioria.

Há alguma fresta de espaço para liberdade de expressão?

J. R. - O Estado se tornou mais repressivo e intolerante desde que Ebrahim Raisi chegou ao poder no último ano. Raisi tem sido parte do establishment iraniano por décadas. Era chefe do Judiciário quando tivemos os protestos de 2019 e manifestantes foram mortos e torturados.

Do início deste ano até 10 de setembro, numa estimativa conservadora, ao menos 400 pessoas foram sentenciadas a morte e executadas no país. Houve uma enorme escalada nas violações dos direitos humanos. É chocante que o Irã tenha mais de 80 crimes puníveis com pena de morte. Crianças infratoras foram executadas, porque a lei permite.

Esse cenário sofreu alterações durante a pandemia?

J. R. - Durante a pandemia houve muitas questões sobre a má gestão da crise. Claro, iranianos alegaram que, por conta das sanções, não eram capazes de atender à população. Sempre fiz campanha pela flexibilização das sanções, particularmente por motivos humanitários. Mas as autoridades iranianas tiveram uma responsabilidade fundamental.

No início de 2021, o líder supremo disse que se recusaria a aceitar vacinas de alguns países como os EUA ou o Reino Unido. E isso levou a mortes desnecessárias. O Irã foi um dos países do Oriente Médio que mais sofreu. Qualquer um que tenha tentado questionar a política de Covid foi enviado para a prisão com penas gravíssimas.

O senhor fala da baixa eficácia das sanções. Como a comunidade internacional pode pressionar por mudanças?

J. R. - Temos que estar unidos em certas questões. Os direitos das mulheres, em particular, são valores que nunca devem ser violados, e a violência contra a mulher deve ser completamente inaceitável. Há muitos países e tradições que aplicam um relativismo cultural ou religioso, e isso não é aceitável.

Se nos unirmos, autoridades iranianas terão que aceitar que a violência não é aceitável. O apedrejamento até a morte por adultério para mulheres ainda está previsto no Código Penal, por exemplo. Mas como tem havido tamanha pressão internacional dizendo que isso é inaceitável, tem havido uma moratória já há alguns anos.

Sanções podem e têm tido impacto negativo, especialmente no direito à saúde. Elas têm um papel a desempenhar, mas não as vejo como uma solução definitiva para reformar o sistema.

Então acha que a onda de mobilização surtirá efeito?

J. R. - As autoridades nunca esperavam que a morte de uma pessoa fosse gerar isso. Para a surpresa deles, o mundo reagiu. Espero que, com a infeliz morte desta jovem, possamos mudar a vida de milhões de mulheres que sofrem no Irã. Não devemos descansar, sua morte não pode ter sido em vão.

Algo bom sairá dessa tragédia. Acredito que as pessoas começarão a questionar esse regime autoritário, extremista e intolerante. Dirão: não, o islã não permite isso. Nenhuma religião permite isso.

Mahsa Amini era uma mulher curda. Qual a importância desse fator?

J. R. - O povo curdo tem sido alvo dessa brutalidade e da repressão por décadas e sente de maneira muito forte a injustiça do sistema. Há um número desproporcional de curdos sendo executados todos os anos. O Estado reprime seu direito à língua, à educação, à liberdade e à cultura. O fato de Amini ser uma mulher curda acrescenta outra dimensão aos protestos, contra a violência étnica perpetrada no Irã.

Quais outros tipos de violações de direitos humanos tem observado como relator especial?

J. R. - Vemos meninas e mulheres sofrendo todo o tipo de discriminação e violência. A lei iraniana permite que meninas a partir dos 13 anos se casem. E meninas ainda mais jovens também podem se casar com a permissão do pai e de um juiz. O casamento infantil é um casamento forçado, que destrói a vida toda da criança.

Na questão das execuções, também há um elemento discriminatório de gênero. A lei diz que uma menina a partir dos 9 anos, e um menino a partir dos 15, podem ser condenados à morte por certos delitos. Há ainda partes do Código Penal que exoneram o chamado crime de honra, permitindo que mulheres sejam assassinadas.

O mundo se chocou tanto com a retomada do Talibã no Afeganistão, enquanto marginalizava o que se passa no Irã...

J. R. - Países como Afeganistão e Irã acham desculpas religiosas para a discriminação de gênero. Mas isso está absolutamente errado. Trata-se apenas de uma desculpa de certos grupos de homens que querem reprimir mulheres e usar a violência contra elas.

O caso de Amini também envolve a participação da 'polícia moral'. O que pensa da existência dela?

J. R. - Não tem nenhum papel a desempenhar em uma sociedade que respeite os direitos humanos. As pessoas devem ter o direito de tomar decisões em questões morais. Mulheres devem ter o direito de escolher se querem ou não usar o hijab. A polícia deveria estar ajudando a sociedade, promovendo os direitos humanos, em vez de crescer a repressão.

O senhor tem tido êxito nas tentativas de diálogo com o regime?

J. R. - Acredito fortemente no diálogo. Queremos uma mudança positiva no Irã. Tenho pedido acesso ao país, mas eles não têm permitido que eu visite o Irã. Peço à comunidade internacional que pressione para que permitam a visita para conversar com as pessoas, visitar as prisões. Assim, minha avaliação terá ainda mais peso.

Raio-X

Javaid Rehman

Relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no Irã desde 2018, é professor na Universidade de Brunel, em Londres, onde leciona disciplinas sobre direito internacional e lei islâmica.


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