SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os herdeiros políticos de Benito Mussolini retomaram, neste domingo (25), o caminho ao poder iniciado há um século pelo ditador italiano, responsável pelo termo fascista ter se tornado xingamento da Europa ao Brasil de Jair Bolsonaro, ainda que com significados ao gosto do cliente.
A vitória da coligação ultradireitista liderada por Giorgia Meloni, apontada na boca de urna, impressiona no contexto: a ascensão de grupos extremistas na política institucional de países como a França e a Alemanha foi algo naturalizada devido aos acenos feitos por eles ao centro, mas de fato nunca tiveram chance de tomar o poder central.
Na Itália, o premiê mais duradouro do pós-guerra, Silvio Berlusconi, habita a faixa de frequência da direita meio fascistóide, meio fanfarrona, por assim dizer, mas seus governos foram controversos por outros motivos. Ele pode ter degradado a política, mas não tornou o país uma ditadura.
Temos assim uma nova Marcha sobre Roma, para ficar no paralelo com o movimento final da implantação do fascismo sob o ex-esquerdista Mussolini (1883-1945). No fim de outubro de 1922, os paramilitares Camisas Negras que formavam a vanguarda violenta do grupo nacionalista prepararam um golpe.
Eles ocupariam pontos estratégicos da capital naquele dia 28. O governo apavorou-se e quis decretar estado de sítio, o que foi negado pelo rei Vittorio Emanuele 3º (1869-1947), num episódio opaco: ele podia buscar evitar o derramamento de sangue, mas queria ficar no trono como figurante, o que conseguiu.
Seja como for, o rei não só deixou a cidade aberta a Mussolini como o convidou para formar um governo. O resto é história: formou-se a ditadura-padrão dos ultradireitistas emergentes da Primeira Guerra (1914-18), tornada experimento social aberrante sob Adolf Hitler (1889-1945) na Alemanha.
Se a tentação da comparação é grande, por óbvio comporta exageros. Dona de uma trajetória de guinada ambígua ao centro semelhante à da francesa Marine Le Pen, Meloni insinuou na campanha entender as regras do jogo. Condenou a invasão da Ucrânia, ao contrário do problemático parceiro Matteo Salvini, cujo partido Liga uniu-se ao Força Itália de Berlusconi e apoia o Irmãos da Itália da próxima primeira-ministra.
Para governar na caudalosa política italiana, que troca de premiê como troca de camisa há décadas, a provável primeira-ministra Meloni terá de ser mais Berlusconi, a quem serviu como ministra da Juventude em 2008, do que Salvini, que chegou a vice-premiê mas gosta mesmo é da companhia de Steve Bannon e Eduardo Bolsonaro.
Mas a cada assoprada dada pela política de apenas 45 anos, há uma mordida dolorosa: a Itália é uma das principais portas de entrada de imigrantes em situação irregular na Europa, e a xenofobia de seu discurso promete um embate cruel nesse campo. Além disso, ela é uma parceira do húngaro Viktor Orbán, que conseguiu fazer o Parlamento Europeu decretar seu país como uma democracia não plena. Adota o lema fascista português Deus, Pátria e Família, o mesmo macaqueado por Bolsonaro.
Enquanto a verdadeira Meloni não se apresenta, é possível ter motivos para sustentar a versão pós-moderna da Marcha sobre Roma. Aos 19 anos, ela concedeu uma entrevista já como líder destacada do antigo Movimento Social Italiano, principal agremiação neofascista do pós-guerra.
Nela, disse que "Mussolini foi um bom político, e tudo o que fez, fez pela Itália". Claro, isso desapareceu de suas falas subsequentes, mas o seu antecessor na liderança do Irmãos da Itália, Ignazio La Russa, foi claro: "Nós somos todos herdeiros do Duce".
Nada disso sugere que ela tomará posse de camisa negra e fazendo a saudação romana, que aliás ela pediu que fosse evitada por seus seguidores. Como a própria Meloni afirmou, a direita italiana hoje é pós-fascista --resta saber do que ela está falando na prática.
Algumas dicas podem ser encontradas na política externa de Bolsonaro em seus dois primeiros anos, quando o Itamaraty virou playground de terraplanistas ideológicos. Assim como o ex-chanceler Ernesto Araújo, Meloni vê o Grande Satã não só no islamismo de imigrantes, mas numa certa "esquerda globalista" financiada por nomes como o do judeu húngaro George Soros, não por acaso pária para Orbán.
A ascensão da ultradireitista na Itália assusta por outros motivos, como lembrou o escritor italiano Roberto Saviano. O país sempre foi um tubo de ensaio de políticas degeneradas: deu Mussolini antes de Hitler, o terror esquerdista das Brigadas Vermelhas antes da onda que varreu a Europa nos anos 1970, Berlusconi e o Movimento 5 Estrelas antes de Donald Trump.
O motivo de fundo, é possível argumentar, é o fato de a Itália estar num ponto de fratura civilizacional, perto de um Oriente Médio e de uma África turbulentos, e ao mesmo tempo tendo uma economia enorme, gerando tensões sociais. E as respostas simplistas do fascismo sempre encontraram eco em tempos de crise como o atual, com o inverno de Putin assombrando líderes europeus.
Nesse sentido, a nova Marcha sobre Roma tem um marco temporal, mas vem acontecendo há décadas, porque o fascismo, com diversas gradações, nunca deixou de fazer parte da paisagem política italiana.
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