SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Eles chegam em vans e param em frente a escolas, shopping centers, hospitais, praças e outros lugares movimentados. Estão em busca de desvios na vestimenta das mulheres: fios de cabelo à mostra sob o véu; uma túnica que não cobre a calça até embaixo do joelho; mais pele do que deveria aparecendo na região dos tornozelos.
Quando encontram --e sempre encontram-- algum deslize, colocam as mulheres no veículo e as levam para a delegacia. Tiram suas fotos, confiscam celulares para que não se registre nada ou se possa falar com alguém e só as deixam sair depois de assinarem um documento com um pedido de desculpas. Elas também precisam ser liberadas por um homem da família, que levam com eles vestimentas tidas como adequadas, que devem ser usadas na saída.
Os detalhes de como funciona a temida polícia moral no Irã, que fiscaliza vestimentas e comportamentos de mulheres adultas em pleno século 21, são relatados por Mahmonir e Mahsima Nadim, duas irmãs refugiadas iranianas que vivem em São Paulo há dez anos.
Segundo elas, o patrulhamento é tão onipresente que quase toda mulher iraniana vai ter passado por isso ao menos uma vez. "Eu sempre tentava passar longe deles, nunca brigava com eles, mas às vezes dava azar", diz Mahmonir. "São muitas vans na cidade toda, centenas, é uma coisa que uma hora vai acontecer."
O primeiro contato, conta, costuma ser feito por uma policial mulher, que pode tocar em outras mulheres. "Elas falam: 'Vamos, minha irmã, nós vamos ajudar você a ficar com o hijab [lenço muçulmano] certo. Você é muçulmana, é muito importante'", diz. "Mas quando a mulher não quer entrar na van, vem um [agente] homem colocá-la à força."
Mahsima lembra que uma vez a pegaram porque estava com o casaco um pouco acima do joelho. "Fiquei muito chateada. Eles tratam você como se fosse uma criminosa. Usam palavras que deixam para baixo, é para você cair mesmo."
No último dia 13, uma jovem de 22 anos natural do Curdistão iraniano, que visitava Teerã com o irmão, foi levada para a delegacia em uma dessas vans. Saiu de lá desacordada e morreu três dias depois. A família diz que ela foi espancada com tal brutalidade pela polícia que entrou em coma. A morte de Mahsa Amini inflamou o país, despertando uma onda de protestos que tem sido fortemente reprimida pelo regime.
Teerã nega as acusações, afirmando que a jovem sofreu uma parada cardíaca. Nesta quarta (28), o presidente do país, o ultraconservador Ebrahim Raisi, disse em pronunciamento que a morte de Amini entristeceu a todos, mas que não permitirá caos nos protestos, defendendo as forças de segurança.
Mahmonir, 42, e Mahsima, 39, organizaram um ato em homenagem a Amini em São Paulo, no último dia 23. Um grupo de imigrantes e brasileiros se reuniu em frente ao Masp, gritando palavras de ordem contra o regime islâmico do aiatolá Ali Khamenei e pedindo direitos para as mulheres no Irã.
As duas irmãs migraram juntas há dez anos, buscando a liberdade que não tinham no país de origem. Optaram pelo Brasil porque o marido de Mahmonir já tinha vindo a trabalho e achava o povo acolhedor.
A dupla conta que as duras regras impostas pelo regime atravessaram suas vidas desde a infância. Quando entraram na escola, aos sete anos, já precisavam usar o hijab. Mahsima se lembra de ter questionado a professora sobre por que, quando o pai ou a mãe morrem, filhos homens recebem o dobro da herança que filhas mulheres.
"Ela brigou muito comigo, disse que eu era rebelde, que me achava acima da palavra de Deus. Me expulsou da aula e chamou meus pais", conta. "Não tínhamos nem liberdade para perguntar por quê. A gente não podia sonhar. Eles matam isso na gente desde criança. Só quando você cresce e estuda, lê livros e viaja para o exterior, percebe que o país onde você nasceu é uma grande prisão."
Apesar de Mahsima e Mahmonir não serem de uma família muito religiosa, o pai delas é policial militar, o que as obrigava a ter atenção redobrada ao que vestiam e à forma como se comportavam, pois ele poderia perder o emprego diante de algum deslize. "Quando eu era parada pela polícia moral, eu chamava meu irmão para assinar [a liberação na delegacia]", lembra Mahmonir. "Nunca meu pai, porque eu tinha medo."
A iraniana se tornou cantora e enfrentava uma série de restrições à carreira --a história dela foi contada pela Folha de S.Paulo em 2019. Não podia tocar instrumentos, apresentar-se na TV, subir sozinha num palco; tinha que se contentar em ser backing vocal de homens ou cantar em corais. "Muitos artistas saíram do Irã. A arte precisa de liberdade", diz a iraniana, que profissionalmente usa o nome Mah Mooni.
Mahsima, que trabalhava com administração e recursos humanos, tornou-se maquiadora no Brasil. Ela se lembra da dificuldade que teve para usar biquíni quando foi à praia pela primeira vez. "Era algo que nunca tinha passado pela minha cabeça. Eu tinha vergonha de mostrar meu corpo. Aprendi muito com as brasileiras, que cresceram com total liberdade e têm outro pensamento. Vir para cá foi uma revolução."
Dez anos depois, Mahsima se deixou fotografar, seminua e envolta em um manto com estampa de azulejos de mesquitas iranianas, para um ensaio artístico feito pela irmã, em protesto contra a opressão das mulheres em seu país.
A relação de Mahmonir com o corpo também mudou no Brasil. Aos 14 anos, ela foi atropelada por um ônibus e perdeu uma perna. Se antes tinha que esconder a prótese sob as roupas longas, aqui faz questão de exibi-la. Explica que, no Irã, existe uma cobrança para que as mulheres estejam impecáveis por baixo do hijab e da túnica longa. "O homem gosta da mulher com o corpo ideal, toda arrumada, perfeita. Mas isso não existe", afirma. "Por isso eu amo mostrar a diferença do corpo com deficiência."
Apesar de terem conquistado direitos que não tinham, Mahsima e Mahmonir lamentam não poderem voltar ao seu país, sentem muita saudade da família e temem pelas iranianas que ficaram. "Quantas podem sair do Irã, como eu e minha irmã?", questiona Mahmonir. "Por que precisamos sair da nossa terra para viver uma vida normal, como toda mulher do mundo?"
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